Bolsonaro defende cloroquina para agradar fabricantes da droga

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Foto: Frederico Brasil/Futura Press/Estadão Conteúdo

Siga o dinheiro. “Follow the money”, a instrução do Garganta Profunda, o “Deep Throat”, fonte que sustentou o jornalista Bob Woodward nas investigações que apontavam responsabilidade do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (1969-1974), na espionagem do Partido Democrata, no célebre edifício Watergate, em Washington, no período pré-eleitoral em que disputaria a reeleição. O fim da história é conhecido. O ex-presidente renunciou antes de ser expulso da cadeira por um impeachment, que se basearia em abundantes provas contra ele, depois de ter sido forçado a expurgar grande parte de seus cúmplices no governo.

O jornal O Globo, em reportagem de Paulo Cappelli, mostra a transcrição de conversa do capitão com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, na qual intercede em favor de duas empresas de amigos seus, para que fossem liberados insumos para a produção de hidroxicloroquina. Uma das empresas, registra a reportagem, a Apsen, a maior fabricante de hidroxicloroquina no Brasil, fora beneficiada com créditos do BNDES, em valor sete vezes maior que em todos os 16 anos precedentes a 2020. O presidente da Apsen, Renato Spallicci, amigo do peito do capitão, será ouvido na CPI da Pandemia. A outra empresa, EMS, é comandada por Carlos Sanchez, que priva da convivência com o capitão em convescotes entre íntimos.

O generoso BNDES, que achou recursos para a fabricante de hidroxicloroquina, é o mesmo banco que iria acolher o auditor afastado do TCU, Alexandre Figueiredo da Costa Silva Marques, autor de relato que desmente as mortes por Covid-19, e com o seu raciocínio sobre superfaturamento de óbitos, alimenta o discurso do capitão reformado. Este, pego no pulo, se desdisse. Mas sem, contudo, esconder a intimidade com tal personagem, que, de resto, deve conhecer desde a infância, porque foi colega de turma do pai dele na academia militar.

A intervenção pronta, contundente e destemida do capitão buscou argumentos artificiais na defesa humanitária, ao insistir junto ao primeiro-ministro da Índia na liberação de 5.390 quilos de insumos para a fabricação de remédio, em 4 de abril de 2020. Não houve a mesma presteza quando, cerca de um mês mais tarde, o laboratório da Pfizer já oferecia aquilo que a ciência indicava como a possível saída para a mais grave pandemia da nossa história: vacina.

O discurso, que se juntou ao negacionismo em relação à vacina e à gravidade da Covid-19, esteve, como que inconscientemente revelado, nas falas que traziam a preocupação central com abusos comerciais em propostas. O dinheiro era sempre uma referência. Aliás, o que foi explicitado pelo coronel Elcio, o ajudante do então quase ministro, o general da ativa intendente Pazuello, e que usou técnicas de desqualificação pública de vacinas no seu depoimento à CPI da Pandemia.

Sim, siga o dinheiro. Quem ganhou com a causa humanitária da cloroquina? Quem obteve apoio financeiro para fabrico de medicamento que não tem eficácia? Quem obteve o empenho pessoal do primeiro mandatário para que conseguisse fabricar remédio para uma doença que este não trata?

A conversa, que pretende estabelecer uma diferença entre um governo do qual “não se ouve falar em corrupção” e aquele, do passado, que encarcerou um ex-presidente acusado de malfeitos e benefícios espúrios com dinheiro público, parece um contorcionismo que não tem amparo em fatos. Ou se restringe o significado de corrupção, dando ao termo uma relação direta com Lava Jato, ou se entende que más práticas, pelo uso da cadeira presidencial para dar ajudas a amigos, que passam a ser os maiores beneficiários de uma política pública de saúde, também é uma forma de corrupção.

Em “Todos os homens do Presidente” (All the President´s men), o icônico filme que conta a derrocada de Nixon, graças à determinação e coragem de um jornalismo que não se rendeu ao histrionismo e ameaças do governo, está uma lição do Garganta Profunda, inconformado com o uso do Estado para benefício pessoal por um presidente arrogante e que entendia estar acima de qualquer regulamento.

A História mostrou que Nixon não estava acima de qualquer lei. Foi necessário que houvesse coragem entre os “homens do presidente” para entender que o exercício da Presidência da República é uma delegação da cidadania.

A identidade do Garganta Profunda só foi revelada 33 anos mais tarde. Era o número 2 do FBI, Mark Felt. Ele se manteve fiel às suas obrigações para com o Estado, não para com o “chefe”. E teve a imprensa a seu lado.

Uol