Bolsonaro quer mudar a lei para aliados ficarem impunes
Foto: Reprodução/ Jornal de Brasília
Um eventual veto do presidente Jair Bolsonaro ao projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional e prevê punição para quem atentar contra o Estado democrático de Direito pode levar ao esvaziamento de inquéritos em curso no STF (Supremo Tribunal Federal) contra aliados do chefe do Executivo.
O texto, que foi aprovado pela Câmara e está em discussão no Senado, acrescenta no Código Penal vários crimes contra a democracia e revoga a legislação de 1983, em vigor desde a ditadura militar.
Juristas têm alertado congressistas sobre o risco de a aprovação da lei, sem um acordo prévio com Bolsonaro, gerar o fenômeno jurídico conhecido como “abolitio criminis”.
Isso ocorre quando um tipo penal deixa de existir no ordenamento jurídico e tem como consequência automática a descriminalização daquela conduta para fatos passados.
Advogados divergem, porém, sobre o momento em que esse risco poderia se concretizar.
De um lado, há quem diga que o veto de Bolsonaro causaria a descriminalização das condutas de maneira imediata. De outro, porém, existe o entendimento de que a derrubada do veto pelo Congresso evitaria a abolição dos delitos, tradução para o português do nome em latim do fenômeno jurídico.
Isso, contudo, só valeria no caso de o Legislativo derrubar o veto dentro de 90 dias, prazo para que a nova lei entre em vigor.
Essa também é a interpretação que o ministro Alexandre de Moraes tem defendido em conversas reservadas com congressistas.
A tese evita que Bolsonaro possa, em uma canetada, esvaziar os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, que são conduzidos por Moraes e miram aliados do presidente.
No entanto, mesmo nesse cenário, o STF teria de se mexer politicamente e iniciar uma negociação com deputados e senadores para acelerar a votação do tema.
Além de pressionar para que haja celeridade na análise do caso a fim de evitar o chamado “abolitio criminis”, outra dificuldade seria o fato de que a derrubada de um veto presidencial depende de maioria absoluta das duas Casas Legislativas, quórum superior à maioria simples exigível para aprovação do projeto de lei.
A discussão sobre a Lei de Segurança Nacional ganhou força nos últimos meses tanto entre apoiadores quanto entre críticos do governo federal.
Isso porque o Executivo passou a usar a norma de maneira recorrente para instaurar inquéritos contra críticos de Bolsonaro e o STF lançou mão da legislação para investigar aliados do chefe do Executivo.
Partidos aliados de Bolsonaro e oposicionistas acionaram o Supremo com o mesmo propósito: pedir a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei.
Em conversas reservadas, porém, ministros da corte descartam invalidar toda a legislação justamente pelo risco de não ter tipos penais para criminalizar aliados de Bolsonaro que defendem o fechamento do Congresso e do STF e pedem a volta do AI-5, ato mais duro da ditadura militar e que depôs três integrantes do Supremo da época.
As ações sobre o tema estão nas mãos do ministro Gilmar Mendes e não têm data para serem julgadas. Como a discussão de uma nova lei ocorreu de maneira célere na Câmara, o Supremo passou a preferir que o Congresso discuta o tema antes de fazer um julgamento a respeito.
No Senado, porém, que ganhou protagonismo com a instalação da CPI da Covid, a análise do projeto não tem andado na mesma velocidade e não há previsão de quando a Casa terá uma deliberação definitiva sobre o assunto.
O tema chegou ao Senado no início de maio após a Câmara aprovar um texto que determina a revogação da atual lei e cria novos tipos penais para quem atentar contra o Estado democrático de Direito.
A atual legislação tem 35 artigos, mas apenas alguns deles têm causado incômodo no Supremo, e não só pelo teor da norma, mas também pela forma como o atual governo a tem utilizado.
A análise feita em reservado por ministros é que o governo federal tem dado uma interpretação muito expansiva, por exemplo, ao artigo 26, que fixa pena de 1 a 4 anos de prisão para quem caluniar o chefe de um dos três Poderes.
Além disso, reportagem publicada pela Folha mostrou que a Polícia Federal abriu 77 inquéritos com base na lei em 2019 e 2020, número que supera o registrado nos quatro anos anteriores, quando a corporação instaurou 44 inquéritos.
Advogado criminalista e mestre em direito criminal, Ruiz Ritter afirma que eventual veto de Bolsonaro é uma questão sensível e que as consequências de um descompasso entre as aspirações do Congresso e do Executivo sobre a nova legislação “merece melhor atenção”.
“A entrada em vigor da nova Lei de Segurança Nacional com vetos do presidente pode criar um vácuo legislativo em relação a condutas ilícitas práticas na vigência da lei revogada, situação que não se modifica posteriormente, ainda que tais vetos sejam derrubados, por força do fenômeno jurídico conhecido como abolitio criminis”, afirma.
A advogada e professora de direito Carolina Costa diz acreditar que a discussão ainda deve demorar um tempo no Senado e postergar a ida do projeto para sanção de Bolsonaro.
No entanto, caso haja a aprovação, ela afirma que o problema estaria em um cenário de veto parcial do presidente. “Se o veto parcial for pela revogação total da atual lei, sem preenchimento da tutela desses bens jurídicos, penso que haveria abolitio criminis”, diz.
Carolina defende a necessidade de haver uma lei para assegurar a defesa do Estado democrático de Direito e tipificar criminalmente a ação de grupos que atuam contra a democracia.
Ela afirma que o veto parcial de Bolsonaro a uma nova legislação sobre o tema, porém, criaria uma situação peculiar. “Um provável veto à lei de defesa do Estado democrático de Direito, sem a tutela penal dos bens jurídicos ali tutelados, criaria uma situação sui generis, na medida em que a discussão travada tanto no Congresso quanto no STF são bastante complexas.”
O advogado criminalista Luís Henrique Machado, por sua vez, afirma que o abolitio criminis só pode vir a ocorrer caso o Congresso não derrube eventuais vetos de Bolsonaro. “Não vejo na prática problema, até porque nada impede que o Legislativo derrube o veto, além do fato de a lei só entrar em vigor depois de 90 dias.”