Confirmado: sistema de votação na Câmara permite fraudes

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Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Mais de 20 deputados federais ao longo da última semana disseram conhecer colegas que passaram o celular para assessores votarem porque estariam em eventos ou “cansados das sessões remotas”. Todos falaram ao Valor , contudo, sob condição de anonimato alegando que não quererem expor os colegas ou por não terem provas.

Feito às pressas para impedir a paralisação das sessões do Congresso por causa da pandemia, o sistema que tem possibilitado a deputados e senadores votarem projetos de lei, emendas à Constituição e medidas provisórias ao longo de um ano e três meses tem uma brecha que permite este tipo de fraude.

A brecha existe porque os sistemas remotos de votação não exigem a digital do parlamentar, como ocorre nas mesas e cabines no plenário da Câmara. Basta o cadastro do celular e uma simples senha, que pode ser repassada para outra pessoa votar no lugar do deputado ou senador. A verificação em duas etapas é mesma utilizada por aplicativos de banco, mas, no caso, a fraude é possível porque o “cliente” estaria colaborando com ela.

O diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), Fabro Steibel, afirma que é compreensível que, nas primeiras semanas, o sistema não fosse totalmente seguro por ser um evento inesperado, mas que essa justificativa não pode ser utilizada após mais de um ano da adoção dele e com um Orçamento do tamanho do que tem o Congresso.

“A lei da certificação digital estabelece que uma assinatura avançada tem como requisito que o seu acesso seja inequívoco. Se não é inequívoco, há uma falha. Estão usando uma assinatura simples para algo que deveria depender de uma avançada”, diz Steibel. Ele sugere o uso de um aparelho móvel com a capacidade técnica necessária para o registro da biometria digital ou que o celular faça um vídeo ou foto do voto para conferência futura.

Foi essa solução da foto de quem está votando a adotada pelo Senado. Mas, questionada pelo Valor, a Coordenação dos Sistemas de Votações Eletrônicas da Casa informou “que nenhuma solicitação de conferência foi feita até o momento” e que “até a presente data não houve provocação” para a realização de auditorias para saber se quem votou foi mesmo um senador.

Na Câmara, não há essa previsão de fotos ou qualquer outro controle para saber quem, de fato, está usando o sistema para votar nas leis em discussão. Cada votação nominal perdida por um parlamentar gera um corte no salário, por isso deputados e senadores costumam se preocupar em não perderem nenhuma delas.

O Sistema de Deliberação Remota (SDR) foi desenvolvido em março do ano passado, na gestão dos então presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e mantido sem alterações de segurança na gestão dos atuais mandatários, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

O uso irregular do sistema tem causado preocupação nos bastidores. Há duas semanas, em uma das sessões que avançava até tarde da noite na Câmara, mas com alto quórum nas votações por causa do sistema remoto, o líder do PDT, deputado Wolney Queiroz (PE), disse que ouviu relatos de colegas dando a senha para assessores votarem e que “não queria acreditar que aquilo fosse verdade”. A declaração gerou constrangimento em plenário e os deputados fizeram acordo para votar a medida provisória (MP) só no dia seguinte.

Corregedor da Câmara, cargo responsável por garantir o decoro parlamentar, o deputado Paulo Bengtson (PTB-PA) afirmou que não recebeu denúncia sobre o tema, mas que a fraude pode estar ocorrendo. “Eu sei que é possível porque basta você dar a sua senha, cadastrar o Infoleg em qualquer celular e aquele celular estará apto para fazer a votação”, disse.

Líder do PT, o deputado Elvino Bohn Gass (RS) disse que o comentário sobre assessores votando “é forte” e que o sistema remoto deveria ser usado apenas para o que foi concebido: questões envolvendo a pandemia ou projetos de consenso. “Não podemos gerar dúvidas, suspeitas, sobre o sistema, e as minhas soluções são: vota os temas mais consensuais nesse sistema e na medida em que voltarmos as sessões presenciais com o avanço da vacinação, faz-se um sistema híbrido para quem tem comorbidades”, sugeriu.

A Câmara disse, em nota, que nos celulares “não há equipamento de autenticação biométrica de digital com acurácia compatível com os padrões de segurança adotados na Casa”, mas que está em “estágio preliminar” o estudo para adoção da biometria facial.

Segundo integrantes da cúpula da Casa ouvidos pelo Valor, essa atualização se deve mais por causa do futuro do que de preocupações com o presente. Há interesse em manter o sistema de votações por celular após o fim da pandemia, para permitir que os parlamentares fiquem em seus Estados ou em reuniões nos ministérios e não precisem ir ao plenário para votar.

Técnicos e parlamentares que estiveram à frente da construção do novo sistema argumentam, nos bastidores, que o aplicativo foi desenvolvido para um momento de emergência, para que o Congresso não ficasse fechado quando precisaria analisar medidas importantes de combate a covid-19 – e também para fazer contraponto à política negacionista do presidente Jair Bolsonaro – e que não foi considerado que os parlamentares pudessem frauda-los.

O histórico do Congresso, porém, registra várias tentativas de fraudar as votações – e todas sem punição ou, no máximo, com uma repreensão por escrito dos envolvidos.

A mais recente foi o voto duplo de um senador na eleição para a presidência do Senado em 2019, mas, em 2013, “alguém” preencheu a cédula de votação de vetos presidenciais e falsificou a assinatura do deputado Zoinho (PR-RJ) numa sessão do Congresso – o caso foi descoberto porque o parlamentar estava em voo na hora.

Na década de 1980, no caso conhecido como “pianistas”, deputados usavam a senha dos colegas para registrar o voto deles no plenário. Na Constituinte, um parlamentar nunca identificado usou o código do deputado Sarney Filho para votar – a fraude ficou comprovada porque ele estava em São Luís no dia. Em 1998, o deputado José Borba (PTB-PR) foi flagrado por câmeras votando três vezes no lugar de um colega na reforma da Previdência.

Os atos da Câmara e do Senado que estabeleceram o SDR determinam que a “disponibilização da senha pessoal ou do dispositivo cadastrado pelo parlamentar a terceiros importará em procedimento incompatível com o decoro parlamentar”, passível até de cassação. A resolução do Senado determina ainda que, se comprovada fraude, o voto será anulado e a votação será que ser refeita se com isso o quórum mínimo para deliberação não tiver sido atingido.

Para o deputado Fabio Trad (PSD-MS), o caso é inclusive de falsidade ideológica e poderia configurar crime tanto do parlamentar quanto do assessor que utilizar o sistema para votar no lugar dele. “É outra pessoa exercendo o voto do deputado, isso é gravíssimo. Não tenho conhecimento de que tenha ocorrido, mas, se houver provas, me parece, sim, falsidade ideológica dos dois”, disse.

Valor Econômico