De saída do STF, Marco Aurélio Mello critica colegas
A menos de um mês de se aposentar, o ministro Marco Aurélio afirma que o STF (Supremo Tribunal Federal) se aproximou da sociedade e se tornou mais transparente desde que assumiu um assento no tribunal, 31 anos atrás.
No entanto, o magistrado critica o fato de os votos terem ficado mais longos nesse período e diz que os atuais integrantes da corte se comportam como se “a fila de processos não tivesse que andar”.
Em entrevista à Folha, o magistrado faz um balanço das mais de três décadas em que esteve na corte, fala de momentos marcantes da sua passagem no Supremo e alfineta ex-colegas que se tornaram advogados após deixarem a corte.
Além disso, também diz que pode ter errado, mas que sempre dormiu com a consciência tranquila e que sai do tribunal “com o sentimento de dever cumprido”. Marco Aurélio deixará o STF em 12 de julho, quando completará 75 anos e se aposentará compulsoriamente.
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Como está a expectativa para a aposentadoria, vai sentir falta da rotina como ministro? Pessoalmente, como está essa transição?
Claro que atuar como juiz é muito gratificante porque você serve aos semelhantes. E eu fui muito feliz desde que tomei posse lá no TRT-1 (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região) em novembro de 1978. Fui feliz no TRT, fui feliz no TST (Tribunal Superior do Trabalho), fui feliz no Supremo e também no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Estava pronto para aposentar em 2016, aos 70 anos, mas veio a PEC da Bengala e eu não sou de virar as costas à cadeira. Agora, evidentemente aceito as regras estabelecidas e saio com sentimento de dever cumprido.
Qual foi o momento mais gratificante no STF?
Todos os momentos foram gratificantes, quer atuando individualmente nas decisões ditas monocráticas, quer no colegiado. E o colegiado é um somatório de forças distintas, nós nos completamos mutuamente. Integrante do Supremo não disputa coisa alguma quando se defronta com processo, muito menos superioridade intelectual, ou seja, ele ombreia com os demais integrantes e, nesse somatório de força —forças técnicas e humanísticas— nos completamos mutuamente.
Qual foi o momento mais difícil?
Momento difícil não tive nenhum. Tive um episódio quando fui eleito presidente e comuniquei ao então diretor-geral que não trabalharia nas secretarias com aposentados, para dar chance à prata da casa, àqueles que estavam na ativa.
E aí houve um insurgimento de um colega que não poderia mexer que estava na Secretaria de Saúde, o doutor Célio Menicucci. E eu disse simplesmente ao colega que o critério não era subjetivo, era objetivo e visava, como já ressaltei, dar oportunidade a outros servidores.
E então no dia da minha posse o próprio doutor Célio apresentou a carta colocando a secretaria à disposição. Mas não tive assim momentos difíceis. Fui presidente e atuei como simples coordenador, ombreando com demais colegas dos trabalhos do plenário e no próprio tribunal, cuidando da parte administrativa. Processo é rotina, ante até mesmo a carga que é distribuída aos integrantes. Não destacamos este ou aquele caso.
Como o senhor vê a formação do Supremo de quando chegou na corte, em 1990, e atualmente?
Fui recebidos de braços abertos em 1990 como primeiro juiz do trabalho que chegou ao Supremo e era presidente o grande e exemplar homem público José Néri da Silveira. Tenho saudades da velha guarda. Eu vejo uma diferença substancial hoje no plenário quanto à agilidade, no que não se concilia celeridade e conteúdo.
Vejo, por exemplo, que procedimento é diverso daquele que havia em 1990. O relator sempre levou voto estruturado, mas os demais componentes do plenário votavam de improviso. Hoje não, hoje cada ministro leva um voto longo que é lido como se estivéssemos em uma academia, e a fila de processos não tivesse que andar. Mas, evidentemente, o Supremo é a composição atual e nós devemos aceitá-la e cumprir o dever, como busquei cumprir com coragem e com desassombro nesses 31 anos e nos 42 anos em colegiado julgador.
O senhor acredita que a relação do STF com a sociedade mudou ao longo dos últimos 31 anos? Os ministros estão mais em evidência?
Há um fator que conduz à eficiência, que é a publicidade dos atos do tribunal. E evidentemente a transparência é maior, inclusive com a criação da TV Justiça, no que aproximou o Judiciário da sociedade brasileira. Agora, o que ocorre com o Supremo na tomada de decisões: às vezes ele precisa ser contramajoritário, ou seja, às vezes para cumprir o que está na Constituição ele tem que adotar, desagradando a sociedade, a solução mais harmônica com a lei das leis que é a Constituição, que a todos indistintamente submete, inclusive submete o próprio Supremo.
A TV Justiça, um projeto implementado pelo senhor e que deu transparência ao Supremo, pode ser apontada como a culpada pelos longos votos que os ministros passaram a proferir?
Eu não posso presumir que um colega utilize a palavra por mais tempo para aparecer na TV Justiça, seria presumir o excepcional extravagante e não o normal. Por isso, costumo dizer que se a TV Justiça é responsável por alguma coisa —além da publicidade que, é a tônica da administração pública— é pelas belas gravatas que surgiram. Na época da ministra Ellen Gracie, eu dizia sobre o coque dela, um belíssimo coque.
O que o senhor pretende fazer depois de aposentado do STF?
Por enquanto, nada. Eu tenho sempre um romance aberto que estou lendo, porque eu penso que a leitura de clássicos de romance enseja o aperfeiçoamento humanístico. Tenho muitos livros para ler, não estou pensando em projeto algum. Presido o Instituto UniCeub de Cidadania e penso em me dedicar um pouco mais à atividade acadêmica.
Tem planos de atuar como advogado?
Evidentemente não vou para o mercado para partir para uma concorrência desleal considerado o cargo que ocupei até aqui. Não vou advogar, jamais fui homem que buscou a prata pela prata, o que busco é a realização como ser humano e a realização principalmente servindo com desassombro aos meus semelhantes.
O senhor se arrepende de alguma decisão que proferiu nesses 31 anos como ministro?
Não. Posso ter errado muito, porque sou um ser humano, mas sempre vim para casa em paz com a minha consciência, ou seja, com a convicção de que cumpri, observando as leis da República, o meu dever. Não tenho arrependimento de qualquer decisão. E acima de cada qual está o plenário, que, decidindo, é a voz da maioria e tem que ser respeitado.
O senhor deu decisões polêmicas que foram amplamente noticiadas. A última delas foi sobre a soltura de André do Rap, um dos líderes do PCC. O senhor costuma afirmar que deve ser reconhecida a presunção de inocência de todos, independentemente da opinião pública. O senhor acha que essa visão é a que deve prevalecer?
Em primeiro lugar, garantias e franquias constitucionais legais existem justamente para se ter julgamento justo, ser feita Justiça. E essas garantias são acionadas por quem cometeu desvio de conduta na vida gregária, então cabe aplicar a lei.
Nós, homens padrão médio, não acionamos qualquer garantia constitucional no campo penal. Agora, no caso do André do Rap, o que eu fiz: o Congresso aprovou a reforma no Código de Processo Penal e introduziu o artigo 316-A, que prevê que a custódia provisória dura por 90 dias e que pode nesse período ser renovado por representação da polícia, requerimento do MP ou de ofício pelo próprio juiz.
No caso do André do Rap, não houve essa renovação e aí, no 316, temos que não havendo renovação a prisão é tida como ilegal. O que eu fiz? Cumpri a lei. Agora, se cumprir a lei é errado, nós estamos muito mal. Nós precisamos, quem sabe, fechar o Brasil para balanço.
O senhor sempre lembra que, em uma palestra em 2017, citou o então deputado Jair Bolsonaro e mencionou o risco de se eleger populista de extrema direita. Após dois anos e meio de governo, o senhor acredita que a democracia do Brasil está em risco?
Eu exteriorizei uma preocupação, não foi uma premonição. Tive que discorrer sobre a tendência mundial de se eleger populista de direita e falei sobre Polônia, Hungria, sobre Estados Unidos com Donald Trump e falei que temia no Brasil a eleição para presidente da República do deputado federal Jair Bolsonaro, que fizera a vida dele batendo em minorias.
Agora, foi o presidente eleito, democraticamente eleito, e ele precisa cumprir o dever. Aguardemos 2022 e pensemos, se for o caso, em mudança de rumos, na eleição de outro candidato. Mas o que eu digo é que há necessidade de observar as regras do jogo e, sempre que se afasta do poder central o dirigente do país, há desgaste muito grande no cenário internacional, e isso não é bom. O bom é estabilidade, estabilidade nas relações e cumprimento dos mandatos.
O impeachment de Bolsonaro seria ruim para o Brasil, então?
Não seria positivo. Nós precisamos parar com essa mania de querer mudar mediante impedimento a direção do país. Vamos observar as regras do jogo, e as regras do jogo direcionam para o cumprimento do mandato.
O senhor acredita que o presidente não cometeu nenhum crime de responsabilidade?
Eu ainda não coloquei, porque não surgiu o processo-crime, o presidente Jair Bolsonaro no banco dos réus. Mas vamos também examinar o que ele tem feito de positivo. A crítica tem que ser sempre construtiva, e não destrutiva.
A democracia corre algum tipo de risco?
A democracia, a meu ver, existe independentemente do presidente e ela existe porque assim o quer o povo brasileiro. E as instituições estão funcionando num sistema de freios e contrapesos.
Qual a expectativa do senhor em relação à sucessão da sua cadeira no STF? O ministro da AGU, André Mendonça, é considerado favorito para a vaga e o procurador-geral da República, Augusto Aras, também tem se colocado como candidato.
Eu já disse que nós temos um celeiro de candidatos e os dois, André Mendonça e o doutor Aras, se apresentam como passíveis de escolha pelo presidente da República. Doutor André é advogado da União concursado, advogado-geral da União hoje e foi ministro da Justiça.
E doutor Aras também é concursado, integrante do Ministério Público e procurador-geral da República. São dois nomes credenciados, assim como temos nomes nos tribunais superiores. Eu, por exemplo, saí do TST para o STF, também há o STJ, que também é um tribunal superior. E temos nomes também na academia, ou seja, no mundo do direito em si. Que o presidente da República seja feliz e escolha o melhor nome.
O presidente do STJ, Humberto Martins, também tem se apresentado nos bastidores como candidato.
Ele evidentemente se apresenta e se diz, creio, evangélico.
O que acha de a discussão sobre a indicação do próximo ministro estar toda centrada na religião do escolhido?
O Brasil é laico, as instituições são laicas, o Estado é laico. O que requer a Constituição federal, que a todos indistintamente submete, é que o escolhido tenha ilibada conduta e domínio do direito.
Como o senhor está vendo o debate sobre mudanças no sistema de votação e as declarações do presidente Jair Bolsonaro de que vai ter voto impresso em 2022 independentemente de o Supremo derrubar eventual decisão do Congresso nesse sentido?
Em primeiro lugar, decisão judicial, a menos que não estejamos mais vivenciando um Estado democrático de Direito, é para ser cumprida. Então, não há isso. Você pode atribuir a arroubo de retórica, que mesmo que Supremo decida vai haver o voto impresso. Não é bem assim, nós temos instituições funcionando, temos, além do Poder Executivo, temos o Poder Legislativo e temos a última palavra o Judiciário na voz do Supremo.
O senhor acredita que corre algum risco de o resultado das eleições de 2022 não ser respeitado?
Não corremos esse risco. Não sou saudosista quanto a um regime de exceção e a Constituição Federal, que Ulysses Guimarães apontou como cidadã, veio realmente trazer um documento estável e consagrando, como eu disse, a República Federativa do Brasil como uma verdadeira democracia.
O presidente tem defendido que a urna eletrônica seja mantida, mas que haja a impressão de um comprovante do voto a ser depositado em outro local, o que permitiria a auditoria da votação.
Olha, houve uma experiência em 2002 na gestão do ministro Nelson Jobim, se tentou o voto impresso aqui em Brasília. E aí foi um problema seríssimo porque o papel da impressora atolava e se tinha paralisação da seção eleitoral. Quer dizer, foi uma experiência negativa, não vamos retroceder.
Raio X
Marco Aurélio Mello, 74
Indicado pelo presidente Fernado Collor, é ministro do STF desde 1990, com aposentadoria marcada para julho deste ano. Antes, foi ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho) entre 1981 e 1990
Folha de SP