Ditadura encarcerava presos políticos em manicômios
Foto: Yasmin Ayumi/UOL
Ali estava a perigosa “terrorista” pernambucana de quem os jornais falavam em fins de 1964. Desacordada, recebia soro na ala feminina do Manicômio da Tamarineira, no Recife. Os “olhos diabolicamente ingênuos”, como descreveu o delegado que a prendera, estavam fechados. Media 1,55 m e pesava menos de 30 kg. Os cabelos longos tinham sido raspados em um quartel do Exército. No braço esquerdo, uma das queimaduras de cigarro que marcavam sua pele tinha infeccionado e cheirava a carne podre.
Nome, Silvia Montarroyos. Codinome, Tatiana. Idade: “21 anos”, segundo sua ficha prisional. Já a família alegava que tinha 17 anos —a data de nascimento teria sido alterada ao ingressar na escola. Acusação: crime contra a segurança nacional. Atividades: participação em um partido trotskista, distribuição de um jornal com conteúdo “subversivo”, alfabetização de lavradores.
A militância durou pouco. Em novembro de 1964, sete meses depois do golpe militar, Silvia foi presa. Em dezembro, após um mês de tortura, os militares a mandaram para o manicômio. Passou os três primeiros dias desacordada. Ao recobrar os sentidos, foi tratada com eletroconvulsoterapia —eletrochoque.
Um levantamento inédito do UOL descobriu 24 casos de presos políticos internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas, em nove unidades da federação. Pelo menos 22 foram antes submetidos a tortura em prisões comuns. As internações foram determinadas pela Justiça Militar ou por autoridades que tinham os presos políticos sob custódia.
Informado sobre o levantamento, o Ministério da Defesa afirmou, por nota, que “os fatos relativos ao período compreendido entre os anos 1964 a 1973 foram abrangidos pela Lei de Anistia, que alcançou, de forma ampla, geral e irrestrita, atos de cidadãos brasileiros”. O Ministério da Defesa responde pelas Forças Armadas.
Algumas formas de tortura empregadas pela ditadura militar tinham como objetivo “provocar danos sensoriais, com consequências na esfera psíquica, tais como alucinações e confusão mental”, diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade —criada para investigar violações de direitos humanos no regime militar.
Alucinações e confusão mental, assim como depressão profunda ou ideias suicidas, são quadros relatados na maioria dos 24 casos. Há, inclusive, laudos psiquiátricos —elaborados por peritos indicados pela própria Justiça Militar— que sugerem que esses sintomas psíquicos foram desencadeados pela experiência na prisão.
“A tortura é tão desagregadora que a pessoa nem sempre vai encontrar recursos psíquicos para se defender, por isso enlouquece”, diz a psicanalista Maria Cristina Ocariz, uma das coordenadoras da Clínica do Testemunho —projeto de atenção psicológica para vítimas de violência do Estado durante a ditadura.
Também há casos de presos políticos internados sem nenhum sintoma de ordem psíquica. Um deles é Ivan Seixas, colocado em uma prisão psiquiátrica no interior de São Paulo, sem indicação médica. Tinha 17 anos. Em carta de denúncia, sua mãe escreveu que os próprios peritos do Estado tinham atestado “tratar-se de rapaz normal, equilibrado, sem nenhum distúrbio psicótico”.
Para identificar os casos, o UOL analisou documentos produzidos durante a ditadura —como processos da Justiça Militar— e informações levantadas por comissões da verdade. Também foram feitas entrevistas com presos políticos e seus familiares. O número de casos pode ser maior, já que muitos documentos da época foram destruídos e outros não estão acessíveis.
Dentre os 24 casos, estão 21 homens e três mulheres, internados entre 1964 e meados de 1970. A maior parte das internações ocorreu em prisões psiquiátricas —naquela época, chamadas de manicômios judiciários. Outras se deram em alas psiquiátricas de hospitais, principalmente hospitais militares, e quase sempre sob vigilância de forças de segurança.
Não foram incluídos no levantamento os casos de internação psiquiátrica depois da prisão, sem participação do Estado.
“Nós nunca soubemos disso. Só sabíamos de casos isolados. E, de repente, são 24 casos, e você tem uma nova dimensão de algo que se achava que não tinha acontecido no Brasil”, diz Seixas, que coordenou a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
“Jamais houve uma reconstituição ampla desses eventos. [O levantamento do UOL] é um complemento ao relatório da Comissão da Verdade, que não teve a oportunidade de tratar especificamente desses casos”, diz Paulo Sérgio Pinheiro, um dos autores do relatório.
“É um capítulo de mais um crime praticado pela ditadura de 64: além de desaparecer com pessoas, internou outras no manicômio. É muito importante reconstituir esses fatos, porque esses espaços também eram lugar de tortura”, continua.
Na prisão, Silvia Montarroyos sofreu diferentes tipos de tortura. “Eram bofetões, queimaduras de cigarro… Me colocaram em uma jaula de uns 80 cm quadrados. Eu tinha que agachar e abraçar as pernas para dormir, mas jogavam balde de água gelada para me acordar. Eu só recebia meio pão seco e meio copo de água”, lembra Silvia Montarroyos, hoje uma senhora com mais de 70 anos.
Privação de sono e de alimento, isolamento e incomunicabilidade são algumas das torturas psíquicas que, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, podem desencadear alucinações.
“Mas eu fiquei calada. O ódio que eles tinham de mim era porque eu não falava nada”, diz Silvia, com um sotaque misto de Pernambuco e do país europeu onde vive desde o exílio durante a ditadura —e cujo nome pediu que não fosse citado, para preservar sua privacidade. Um ofício militar de dezembro de 1964 confirma que Silvia “vinha recusando-se a prestar qualquer declaração, desde a data de sua prisão, e ultimamente apresentava sintomas de alienação mental”.
“Eu estive além da dor. Daí para a loucura foi a coisa mais natural do mundo. Tive alucinações visuais e auditivas”, diz a ex-presa política.
Ao chegar no Manicômio da Tamarineira, Silvia estava inconsciente e muito machucada. “Você chegou aqui quase morta”, disse um dos médicos que trataram dela. O profissional acreditava que Silvia tinha sido mandada para o manicômio para morrer, de modo que a culpa da morte não fosse atribuída à tortura.
Como tratamento, Silvia não recebeu apenas eletrochoques. Também foi tratada com insulinoterapia, que consistia na aplicação de doses excessivas de insulina para provocar convulsões e até levar ao coma. “Dos choques elétricos eu não lembro, mas está no laudo médico. Já a insulina eu lembro ligeiramente. Precisavam me amarrar na cama, senão eu caía, de tanto que me debatia com as convulsões. Eram formas de tortura”, relata.
A insulinoterapia foi abandonada pela psiquiatria há décadas. Já o eletrochoque é usado de forma muito mais limitada e controlada. A própria internação psiquiátrica foi colocada em xeque pela luta antimanicomial, que pediu o fim dos manicômios, a partir do final dos anos 1970. “A forma de tratamento utilizada nos manicômios era medieval. Sem dúvida, agravava o quadro de quem ficou louco pela tortura”, diz a psicanalista Maria Cristina Ocariz.
“A ditadura foi uma fábrica de mortos e uma fábrica de loucos. Como eu, muita gente enlouqueceu na tortura. Muitos outros precisaram [de suporte psiquiátrico] depois da prisão”, diz Silvia.
“Entre as torturas que me fizeram, a pior foi… [silêncio] Está me vindo um branco agora. Acho que é porque eu estou mexendo em um assunto que estava um bocado enterrado, sabe? Mas é necessário contar, para que fique para a posteridade o que aconteceu, é um caso histórico”, diz Silvia, engasgando para relatar uma lembrança que já tem 56 anos.
É final de novembro de 1964. Em uma sala escura de um quartel no Recife, a militante é colocada frente a frente com Pedro Makovski. Uruguaio de 24 anos, Makovski emigrou para o Nordeste para chefiar o grupo político que Silvia integrava, o Port (Partido Operário Revolucionário Trotskista).
Os dois haviam sido presos juntos, de mãos dadas, quando tentavam fugir da polícia. Estavam noivos. “A luta e eu eram toda a vida dele. E ele era leal a nós duas e só se dedicava a nós duas.”
Desde a prisão, no início daquele mês, os noivos não se viam. Neste reencontro promovido pela ditadura, Silvia foi estuprada, e Makovski foi obrigado a assistir. “Eu estava completamente ensanguentada… ele viu que eu ia morrer se continuassem… foi aí que ele falou [aceitou depor].”
Documentos militares enviados para o Arquivo Nacional confirmam que Makovski foi reinquirido em 23 de novembro de 1964. E que, desta vez, deu um longo depoimento —são nove páginas de testemunho.
Ao ser julgado pela Justiça Militar, anos depois, o Makovski denunciou que “um dos meios conseguidos para forçá-lo a assinar os depoimentos foram torturas físicas impostas a sua noiva”. E que, “em consequência das torturas sofridas, Silvia foi internada no Manicômio da Tamarineira em estado de coma” e que “ainda hoje se encontra mentalmente abalada”.
“As pessoas [torturadores] que fizeram isso com Silvia constituem um perigo para a sociedade”, disse o jovem uruguaio.
Diante do relato de Makovski, o procurador militar debochou, dizendo que o preso político, “por um processo de transferência explicado por Freud, quer transmitir a outrem sua própria periculosidade”. Mas sua “periculosidade” era apenas de ideias. O julgamento de Makovski não revelou nada além de crimes de pensamento. Já o que viu a noiva sofrer foi extremamente material.
“O estupro foi o que mais me fez enlouquecer. Mas foi o conjunto das torturas, não só a ignomínia da violência sexual, que me levou à loucura”, escreveu Silvia no livro de memórias Réquiem por Tatiana.
Em agosto de 1964, poucos meses antes de Silvia ser internada no Manicômio da Tamarineira, o médico que dirigia a instituição enviou duas cartas para o tenente-coronel do Exército Hélio Ibiapina. Por ordem do militar, e sem mandado judicial, dois outros presos políticos tinham sido enviados ao manicômio. Era o início da ditadura.
O texto das duas cartas era idêntico, só mudava o nome do preso: “Acontece que a Lei que rege a Assistência a Psicopatas no Brasil, ao falar de Manicômios Judiciários diz: ‘Os internamentos serão feitos pelo Juiz’. A palavra Juiz, na Lei, compreende os Magistrados e os órgãos auxiliares da Justiça. Diante da Lei, está o paciente acima internado ilegalmente neste serviço. Saudações cordiais”.
Eram cartas ousadas, quase uma insubordinação. O tenente-coronel Ibiapina era amigo pessoal de Castelo Branco, primeiro ditador do regime militar e um dos articuladores do golpe. Além disso, Ibiapina não escondia que ocorriam torturas em Pernambuco.
Certa vez, ao se queixar das intervenções de Dom Hélder Câmara em favor dos presos políticos, Ibiapina afirmou: “Nunca neguei que as torturas existissem. Elas existem e são o preço que nós, os velhos do Exército, pagamos aos jovens. Caso tivessem os oficiais jovens empolgado o poder, os senhores estariam hoje reclamando não de torturas mas de fuzilamentos. Nós torturamos para não fuzilar”.
A mensagem do diretor do manicômio, o médico Ruy do Rego Barros, para o tenente-coronel Ibiapina era clara: a internação de presos políticos, sem ordem judicial, por simples mando militar, era ilegal.
Ainda assim, os dois presos políticos citados nas cartas foram mantidos na Tamarineira. Um deles era Edival Freitas, que trazia diversas marcas de injeção pelo corpo. Sobre ele, a equipe médica do manicômio avaliou que seu quadro “foi decorrente das torturas e, provavelmente, doses excessivas do soro da verdade” —como era chamado o pentotal, um anestésico usado na tentativa de fazer os presos políticos falarem.
Aos psiquiatras, Freitas disse que “enlouqueceu quando estava preso”. O diagnóstico do laudo de sanidade confirmou: “acometido de uma crise de psicose maníaco-depressiva, com predominância de depressão, consequência da prisão”.
O segundo preso era Antônio Albuquerque, um lavrador acusado pelos militares de participar de movimentos camponeses de oposição à ditadura. Sobre ele, há apenas registros de que tremia e berrava ao ver alguém de farda no Manicômio da Tamarineira.
As primeiras internações de presos políticos ocorreram em Pernambuco e na Paraíba, em 1964. Nos anos seguintes, os casos se espalharam pelo país: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, Distrito Federal, Ceará.
Em São Paulo, em 1971, presos políticos mantidos na rua Tutóia, no Paraíso (zona sul da cidade), puderam acompanhar a deterioração do estado mental de Antonio Carlos Melo, estudante de Geologia na USP (Universidade de São Paulo). No local funcionava a Oban —Operação Bandeirantes, criada para centralizar a investigação de organizações de esquerda. Hoje, é uma delegacia.
“Eu sou Tadeu, Tadeu eu sou, sou comandante revolucionário. Eu sou Tadeu, Tadeu eu sou, sou comandante revolucionário. Vanda! Vanda! VAR-Palmares!”, cantarolava Melinho, como era conhecido, enquanto andava de um lado para o outro da cela.
Tadeu era seu codinome. Vanda, o codinome de Dilma Rousseff, que viria a ser eleita presidente da República em 2010. Ambos integraram a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), uma organização política de esquerda que pretendia derrubar o regime militar, inclusive por meio de ações armadas.
O estudante foi preso em 1970, mesmo ano que Dilma. “Melinho foi barbaramente torturado, porque queriam que falasse sobre algumas pessoas. Uma delas era a Vanda [Dilma]. Mas ele não falou”, diz Ivan Seixas, que também ficou preso na Oban em 1971, antes de ser mandado para a prisão psiquiátrica.
“O Melinho foi enlouquecido na tortura. Eu fiquei em uma cela do lado da dele. Ele ficava cantando essa música sobre Tadeu e Vanda, depois entrava debaixo do cobertor e falava sozinho”, lembra o colega de prisão.
Em 1972, Melinho foi mandado para o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo. A Justiça Militar o considerou inimputável —ou seja, incapaz de responder pelos próprios atos— e o condenou a dois anos de internação compulsória. Mas só foi liberado quatro anos depois, em 1976. Quando se viu livre, Melinho foi ajudado por antigos colegas da Geologia da USP, mas nunca se recuperou totalmente.
“Que monstruosidade fizeram com ele”, disse Dilma a Ivan Seixas, em um encontro em Brasília quando a ex-presa política era presidente.
Ao sair do manicômio, Melinho foi questionado por amigos se havia outros presos políticos em Franco da Rocha. Respondeu que não tinha como lembrar. Estava sempre sob efeito de medicamentos psiquiátricos muito fortes, que tiravam a consciência da realidade.
Durante a ditadura militar, uma das drogas usadas no Manicômio de Franco da Rocha foi a escopolamina. Sob altas doses, a substância pode produzir sensação de morte iminente. Médicos nazistas a combinaram com morfina para praticar eutanásia. Já em Franco da Rocha, a droga foi usada como forma de “disciplina e não terapêutica”, cita um ofício assinado pelo diretor do manicômio em 1968.
Também no início dos anos 1970 passou pelo Manicômio de Franco da Rocha o jornalista João Adolfo Castro da Costa Pinto, acusado de fazer parte da Ação Libertadora Nacional (ALN) —o que ele negava. Em seu laudo psiquiátrico, Costa Pinto disse que “sua doença iniciou-se um ano após ser preso”.
“Eu apanhei muito, me deram choque na cabeça, nos testículos e acho até que estou impotente. Aí me disseram que eu fiquei muito nervoso, tinha ocasião que eu saía de mim, mas não sei explicar. Eu sei que não consigo me distrair, não tenho fome, não durmo, só tenho vontade de ficar deitado”, relatou Costa Pinto ao psiquiatra do manicômio.
Em conclusão, o médico assinalou que o jornalista passava por “um quadro mental de intensa apatia e depressão, com ideias delirantes de ruína”.
No início dos anos 1970, enquanto Melinho e Costa Pinto estavam no Manicômio de Franco da Rocha, a pernambucana Silvia Montarroyos foi considerada foragida.
No primeiro semestre de 1965, depois de quase seis meses de internação, sua defesa conseguiu um habeas corpus para tirá-la do manicômio no Recife. Livre, mas com medo de ser presa ou internada novamente, Silvia decidiu fugir de Pernambuco. O medo tinha razão: logo depois, a Justiça Militar voltou a decretar sua prisão preventiva.
O risco de ser identificada durante a fuga era grande. Cartazes com a fotografia de Silvia tirada no dia da prisão ainda estavam estampados por Recife. O rosto parecia de menina, mas o texto dizia se tratar de uma perigosa subversiva.
Católica devota, a família Montarroyos conseguiu articular uma fuga com benção da igreja: Silvia se escondeu debaixo de um andor de Nossa Senhora do Carmo, que foi transportado por um jipe dirigido por dois freis franciscanos, do Recife a João Pessoa.
Da Paraíba, Silvia foi para o Rio de Janeiro. Depois, fugiu para a América Latina. Já estava fora do país quando, em 1966, a Justiça Militar a condenou a oito anos de prisão por crimes contra a segurança nacional. Em 1970, fugiu de vez para a Europa, onde se exilou. Sua pena foi extinta com a Lei da Anistia, em 1979.
No exterior, Silvia estudou, se casou, teve filhos e netos. Em 2001, voltou ao Recife e bateu às portas do Manicômio da Tamareira, já renomeado Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano. Queria ver sua ficha médica. Mas o único registro de sua passagem pelo manicômio era de que dera entrada em 1964. Nada mais. Os documentos completos tinham sido destruídos.
Segundo a instituição, não havia “condições de fornecer melhores dados por causa da enchente ocorrida em 1975 que destruiu grande parte de nosso arquivo”. Já segundo Silvia, funcionários do antigo manicômio confidenciaram que só os documentos dos presos políticos foram destruídos.
“Mesmo assim, não podem negar o que aconteceu, porque há o meu depoimento e o de diversas pessoas que me viram lá.”
Um deles é o do psiquiatra Othon Coelho Bastos Filho, que trabalhou no Manicômio da Tamarineira. O médico relatou para a Comissão da Verdade de Pernambuco, em 2013, que recebeu na instituição uma estudante universitária “em estado deplorável”, levada pela rádio patrulha (antiga designação para as rondas ostensivas da Polícia Militar), em 1964.
“Ela chegou… aquela coisa humana”, disse. “Essa moça, eu me recordo bem, chamava-se Silvia”.
“Apesar do estado de perturbação da consciência, ela tinha momentos de plena lucidez. Ela conseguiu dizer, por exemplo, ‘eu fui seviciada sexualmente’. O testemunho dela, para nós, tinha fidedignidade”, declarou o médico, que morreu em 2016.
Outra testemunha, o uruguaio Pedro Makovski, noivo de Silvia à época, morreu em 2006. Depois que saíram da prisão, os dois voltaram a se ver uma única vez, em 1986, quando visitaram o Recife com as respectivas famílias.
Já era democracia no Brasil outra vez. “Quando eu perguntei sobre esse episódio [o estupro], ele ficou com os olhos cheios de lágrimas, segurou minha mão e falou: petiza [pequena, em espanhol], há coisas que é melhor esquecer”.
“Eu só me lembro de cenas deste dia [do estupro]. Cheguei até a fazer um tratamento de regressão de memória. Mas, com o tempo, eu entendi que, se eu não lembro, é porque minhas forças ainda não são capazes de suportar. A natureza é sábia: sepultou a dor no subterrâneo da memória”, diz Silvia, a quem o Brasil já chamou de terrorista por ter ideias políticas e distribuir jornais.