Ministério da Defesa quer gastar R$ 4 milhões com vídeo game

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Foto: Reprodução

Enquanto o Ministério da Defesa alerta para o risco de sucateamento das Forças Armadas por falta de verba, o Exército Brasileiro aprovou o gasto de R$ 3,9 milhões para fazer um game.

O Missão Verde-Oliva, cuja existência foi revelada pela Folha há um ano, visa popularizar os militares entre os jovens consumidores de jogos eletrônicos, um mercado de 76 milhões de pessoas que movimenta quase R$ 10 bilhões por ano no país.

Questão de prioridades à parte, há um problema adicional: o valor, que é o dobro do que a Defesa gastou com apoio à presença brasileira na Antártica e equivale ao aplicado em pesquisa aeroespacial em 2020, não é suficiente para fazer um produto viável.

“A sensação é de que o investimento é um risco enorme. Não há como construir um jogo com qualidade gráfica realística AAA [padrão-ouro do mercado]. O escopo, utilizando um orçamento limitado como este, é também limitado”, diz Thiago Freitas.

Ele preside a Kokku, estúdio recifense que se tornou a sensação do mercado de games brasileiro. Como já havia avaliado no ano passado, para começar a brincadeira seriam necessários cerca de R$ 15 milhões, e ainda assim com expectativas baixas de resultado.

Na portaria do Estado-Maior do Exército de 25 de maio que regulou o plano, o objetivo é ter a licitação com uma empresa nacional completada até o fim do ano, para evitar que o valor separado para este ano, R$ 875 mil, caia na rubrica de restos a pagar da Força e se perca.

O plano prevê gastos de R$ 1,4 milhão em desenvolvimento em 2022 e outros R$ 1,1 milhão em 2023. A partir daquele ano, o suporte ao projeto custaria R$ 263 mil, valor que cai a R$ 66 mil em 2024, R$ 58 mil em 2025 e R$ 55 mil, em 2026.

Há também outra indicação de fragilidade inicial do projeto. Segundo a portaria, apenas os valores de 2021 estão garantidos em orçamento.

“Para os demais anos, o chefe do Centro de Comunicação Social do Exército deverá buscar possíveis parcerias com as empresas estratégicas de defesa para a viabilização de patrocínio”, diz o texto.

Segundo um oficial com conhecimento do assunto, com as dificuldades atuais do setor, há uma boa chance de que os R$ 875 mil iniciais sejam gastos e o projeto, engavetado. Não é muito ante ao universo do orçamento militar superior a R$ 100 bilhões anuais, mas sinaliza falta de coordenação, na sua opinião.

O modelo é temerário, afirma Freitas. “É perigoso para o desenvolvedor se comprometer a um desenvolvimento de três anos com um teto de recursos baseado em tempo e não em recursos, como quantidade de profissionais, licença de softwares etc.”, diz.

Segundo ele, a etapa da produção em massa de um game emprega centenas de pessoas, enquanto a de conceito usa um contingente bem mais restrito.

O Centro de Comunicação Social do Exército, que será o gestor do programa, o defende, mas admite o risco de jogar dinheiro fora. “Foi realizado um estudo de viabilidade técnica do projeto. Eventuais cortes orçamentários implicarão revisão de prioridades por parte do Comando do Exército”, afirmou, em nota.

Como a Folha mostrou no ano passado, a ideia do game veio da iniciativa equivalente do Exército americano, que em 2002 lançou a série America’s Army.

São “shooters”, jogos no qual o usuário tem algum objetivo, mas que não passa de um McGuffin, na linguagem de Alfred Hitchcock —o cineasta sempre incluía algo que parecia importante para esconder o real foco de suas tramas.

Ao fim, o ponto desse tipo de game é matar o máximo de pessoas possíveis.

Para evitar polêmicas que serão inevitáveis, nas diretrizes publicadas no ano passado a Força determinava que o game deveria ser econômico em sangue e ser passado num distante 2025 para evitar correlações políticas atuais.

Também não poderia usar como cenários lugares como as favelas do Rio —onde militares enfrentam crises de imagem em casos como o fuzilamento de um músico numa barreira.

“Um jogo como o [altamente popular “shooter”] Call of Duty é muito caro. Um America’s Army, similar ao buscado pelo Brasil, é um pouco mais barato, mas ainda é extremamente caro. Cerca de R$ 15 milhões seria suficiente, talvez, para construir a base de um jogo”, diz Freitas.

O America’s Army custou mais de R$ 200 milhões em dez anos, a partir de seu desenvolvimento iniciado em 1999.

Um game AAA, no jargão do mercado, como o problemático o Cyberpunk 2077, teve um orçamento de desenvolvimento de US$ 314 milhões (quase R$ 1,5 bilhão).

“Até se você pensar no America’s Army como carro-chefe de comunicação, antes dele vieram inúmeras iniciativas, como patrocínio de filmes e eventos esportivos. No Brasil, o Exército ainda não soube lidar ao menos com os memes”, avalia o chefe da Kokku.

Tradicionalmente, Força Aérea e Marinha têm os programas mais caros na Defesa. Em 2020, investimentos representaram apenas 7,4% dos R$ 108 bilhões gastos, com quase 80% despendidos com pessoal, segundo dados do sistema de acompanhamento orçamentário do Senado.

O programa do Exército com maior execução orçamentária em 2020 foi o dos blindados Guarani, que recebeu R$ 304 milhões.

Em ofício enviado ao Ministério da Economia no dia 10 passado, o titular da Defesa, general da reserva Walter Braga Netto, afirmou que a recomposição do orçamento militar é vital para evitar o sucateamento das Forças Armadas.

No fim de maio, a Força Aérea sentiu o baque. Anunciou que foi obrigada a cortar de 28 para talvez 13 ou 16 o número de cargueiros KC-390 comprados da Embraer, em uma renegociação que ainda está em curso.

Folha de S. Paulo