Servidor diz que foi pressionado a comprar vacina indiana
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Em depoimento mantido em sigilo pelo MPF (Ministério Público Federal), um servidor da área técnica do Ministério da Saúde afirmou ter sofrido pressão de forma atípica para tentar garantir a importação da vacina indiana Covaxin, cujo contrato com a empresa Precisa Medicamentos tinha prazos para fornecimento de doses já estourados naquele momento.
Na oitiva, obtida pela Folha, o servidor citou o nome de quem, segundo ele, seria um dos responsáveis pela pressão atípica dentro do ministério: o tenente-coronel Alex Lial Marinho, que era homem de confiança do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército.
Marinho foi nomeado pelo então ministro, em 9 de junho de 2020, para o cargo de coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde. Era subordinado ao coronel Élcio Franco, então secretário-executivo do ministério, braço direito de Pazuello. Ele foi exonerado no último dia 8 pelo atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
Em nota enviada à Folha, o Ministério da Saúde informou que respeita a autonomia da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e não faz pressão para aprovação de vacinas.
A Procuradoria da República no DF identificou um descumprimento do contrato assinado entre a Precisa e a Saúde, com quebra de cláusulas sobre o prazo de entrega do imunizante. O MPF investiga a suspeita de favorecimento à Precisa e aponta a existência de cláusulas benevolentes.
O suposto favorecimento também entrou no foco da CPI da Covid no Senado, que passou a direcionar as investigações para a relação entre empresas e o governo Jair Bolsonaro na pandemia, seja no caso de imunizantes ou de fornecedoras de cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada no tratamento da Covid-19.
Uma cópia do inquérito civil público do MPF foi compartilhada com a CPI. O depoimento do servidor, que atua em uma área de comando estratégico na viabilização de vacinas, também foi enviado à comissão. Seu nome é mantido sob sigilo.
A oitiva passou a ser considerada uma peça importante tanto para as investigações da Procuradoria quanto da CPI. O representante da Precisa, Francisco Emerson Maximiano, foi convocado a prestar depoimento à comissão na próxima quarta-feira (23).
O servidor foi ouvido pelo MPF em 31 de março deste ano, mesmo dia em que a Anvisa negou pedido de autorização excepcional de importação e distribuição da Covaxin, desenvolvida pela empresa indiana Bharat Biotech. A representação no Brasil é feita pela Precisa.
O contrato para compra da vacina foi assinado entre a Precisa e o Ministério da Saúde. Estão previstos 20 milhões de doses, a um custo total de R$ 1,61 bilhão. A vacina é a mais cara dentre as compradas na gestão Pazuello: cada dose sai por US$ 15.
Pelo estipulado em contrato, os lotes já deveriam ter sido entregues ao Brasil.
Ao ouvir o servidor, o MPF quis saber se existia pressão que indicasse algum tipo de favorecimento à empresa brasileira.
“Nesse caso, sim. [Sobre a] Covaxin eu tenho recebido muitas mensagens, de vários setores do ministério, da Secretaria Executiva, da própria coordenação onde eu trabalho, perguntando o que falta para fazer essa importação, inclusive sábado e domingo, sexta 11 horas da noite”, respondeu o servidor.
Ele foi questionado, então, se isso era usual, se ocorria em relação às outras vacinas contratadas pelo ministério.
“Não”, respondeu. “As outras ainda não estão na fase de importação, porque o contrato da Pfizer se inicia em abril e a Sputnik [V, vacina russa com produção prevista no Brasil pela União Química] só depois conseguiu registro ou autorização especial”, afirmou.
“No caso da Covax, que foi a que a gente fez, não houve esse tipo de ligação, de mensagem, que é o que a gente realizou e chegou ao Brasil, que eu tenho como exemplo”, completou.
A Covax Facility é uma aliança internacional para aquisição de vacinas, capitaneada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), com adesão do Brasil. As doses também precisam ser importadas. O governo federal aderiu à quantidade mínima possível, 42,5 milhões de doses, equivalentes a 10% da população.
Segundo o servidor ouvido pelo MPF, os documentos pendentes para a importação da Covaxin, cobrados pela Anvisa, deveriam ser apresentados pela empresa, o que não havia ocorrido até aquele momento. Ele citou a pendência de certificados de liberação de lote, análises e outros documentos técnicos.
”Mas eu já ouvi aqui pedindo a exceção da exceção para a Anvisa. Tem superiores tentando articular isso, apresentar esse documento posteriormente, não sei o que estão articulando junto com a Anvisa. Mas como são documentos técnicos, emitidos pelo fabricante, não há o que o ministério [possa] fazer, se não a empresa apresentar isso”, afirmou no depoimento.
Nesta sexta-feira (18), o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), mudou a condição do coronel Élcio Franco perante a comissão, que passou de testemunha para investigado, assim como Pazuello e outras 12 pessoas.
Franco também deixou o ministério, e agora tem um cargo de assessor na Casa Civil da Presidência. Pazuello, depois de ser demitido em março, ganhou um cargo de secretário no Palácio do Planalto.
Segundo o depoente, houve pedidos “cobrando da gente uma resolução, de procurar acionar a empresa, pressionar para ver se consegue esse documentos o mais urgente possível”.
“Vendo os pontos que a Anvisa colocou em exigência para tentar sanar o quanto antes”, disse o servidor do ministério em depoimento ao MPF.
Segundo o funcionário, as tratativas internas em relação à importação das vacinas da Covax Facility foram bem diferentes. “Foi tranquilo. A Opas [Organização Pan-Americana de Saúde] apresentou a documentação, a Anvisa apresentou. Não houve problema ou dificuldade por falta de documentação.”
Somente no último dia 4, mais de dois meses depois, a Anvisa aprovou a importação das doses da Covaxin, assim como da Sputnik V. Condições específicas deverão ser cumpridas e, no começo, somente uma quantidade limitada de doses será permitida. Essas vacinas ainda não chegaram ao país.
O suposto favorecimento do governo Bolsonaro à Precisa é uma das linhas de investigação abertas recentemente pela CPI.
Além da convocação para que o representante da empresa preste depoimento à CPI, a comissão pediu a quebra de sigilos de Maximiano e solicitou informações à Precisa.
Os membros do colegiado questionam o fato de o contrato para a compra da Covaxin ter sido assinado de modo mais rápido do que acordos para aquisição de outros imunizantes, como a Pfizer e a Janssen.
Também chama atenção de senadores o fato de o procedimento ter sido célere em relação a um imunizante que custa mais do que os demais adquiridos pelo governo.
Segundo documentos enviados pelo ministério à CPI, as conversas com a Precisa começaram em 20 de novembro de 2020. Em 18 de janeiro, a pasta envia ofício ao presidente da Precisa informando querer dar início às “tratativas comerciais para eventual aquisição de lotes”. O contrato entre o ministério e a Precisa foi assinado em 25 de fevereiro.
Todas as outras tratativas, para a compra da Janssen, da Pfizer e da Sputnik, foram mais demoradas.
O Ministério da Saúde disse, em nota, que “mantém diálogo com todos os laboratórios que produzem vacinas contra a Covid-19 disponíveis no mercado”. No entanto, só distribui aos estados imunizantes aprovados pela Anvisa, que avalia rigorosamente a documentação dos fabricantes”, completou. A pasta também ressaltou que não realizou a compra da vacina Covaxin e que não fez pagamentos ao laboratório.
A Precisa Medicamentos informou, em nota, que desconhece a existência de um inquérito e investigação do MPF envolvendo a empresa. Também argumenta que nunca solicitou e nem contou com favorecimento de agentes públicos.
“A Precisa Medicamentos não solicitou e não contou com qualquer tipo de favorecimento de agentes públicos. Todos os processos foram feitos de forma transparente, sem qualquer interferência. Todos os prazos e trâmites burocráticos foram respeitados”, afirma o texto.
A empresa também afirma que entregou toda a documentação que foi solicitada ao Ministério da Saúde e à Anvisa até o momento. Os demais, relativos ao processo burocrático serão encaminhados, seguindo todos os prazos estabelecidos.