Superpandemia obriga Rússia a vacinar população à força
Foto: Denis Griechin – 11.jun.21/Moscow News Agency via Reuters
Diante de uma avassaladora terceira onda de Covid, a Rússia ampliou medidas de restrição de circulação para pessoas que não receberam a vacina e as polêmicas campanhas de imunização obrigatórias. Nesta terça (22), a capital Moscou proibiu não vacinados de frequentar cafés e restaurantes a partir do dia 28.
Esses estabelecimentos voltaram a sofrer restrições de horários, mas agora só poderá entrar neles quem mostrar comprovante de vacinação, teste com resultado negativo ou prova de que ficou doente há pelo menos seis meses. São medidas emergenciais, e não de reabertura programada como ocorreu em Israel e como paulatinamente ocorre na Europa e nos Estados Unidos.
O número de contaminações no país do presidente Vladimir Putin explodiu nas últimas duas semanas. Quase dobrou sua média móvel de uma semana para 15 mil casos diários —isso num ambiente de notória subnotificação. Em Moscou, ponto focal da pandemia com metade dos 5,35 milhões de casos no país até aqui, a média triplicou. No sábado (19), um recorde de 9.000 infecções foi atingido, repetindo a véspera, ante 3.000 há duas semanas.
No cômputo geral, a Rússia está em sexto lugar no número de casos no mundo. Sua incidência por milhão de habitantes é de 36 mil ocorrências. No Brasil, o terceiro colocado nominal atrás de EUA e Índia, são 2,3 vezes mais.
As mortes são sensivelmente mais baixas, mas médicos locais apontam ampla subnotificação devido aos critérios para definir Covid-19 como causa. Assim, são 893 mortes por milhão de habitantes —índice 2,6 vezes maior entre brasileiros.
“Isso aqui virou um caos. Começamos a dobrar turnos novamente, como no começo da pandemia, mas os casos são muito mais graves. As pessoas morrem mais rapidamente”, afirma a hematologista Liubov, 42, que trabalha no hospital de referência Kommunarka e pede para não divulgar o sobrenome.
Nesta terça, ocorreu o recorde de mortes na capital em toda a pandemia: 86, além de 6.555 novos casos.
O Ministério da Saúde russo aponta a variante delta, encontrada primeiro na Índia, como a culpada pela avalanche sanitária. Ela começou a circular oficialmente no país em maio, e o governo até identificou um grupo de estudantes indianos que visitou Ulianovsk, cidade no centro-sul da porção europeia russa, como possível vetor da doença.
Em um país dado a procurar responsabilidade em agentes estrangeiros, tal precisão é questionável, mas o fato é que hoje, segundo o prefeito de Moscou, Serguei Sobianin, 90% dos novos doentes na capital têm a variante delta.
Para complicar, a cobertura vacinal russa é baixa. Apesar de ser um dos países que mais rapidamente desenvolveu um imunizante contra a Covid-19, a Sputnik V, e de hoje contar com dois outros fármacos, sua campanha de inoculação patina.
Apenas 10,7% da população total do país está vacinada com duas doses, número semelhante ao brasileiro. Mas aqui há cerca de 30% dos moradores com pelo menos uma dose, número que cai a mais da metade na Rússia.
Isso levou a medidas controversas. Moscou determinou a vacinação compulsória de pelo menos 60% dos trabalhadores de serviços na semana passada, no que foi seguida por São Petersburgo —ambas são as cidades mais populosas do país.
Outras regiões, como Tula, foram mais agressivas: todos os grupos de risco terão de ser imunizados.
A resistência ao movimento é clara e tem na hematologista Liubov um exemplo acabado. A Folha havia questionado a médica em março sobre sua resistência em receber a injeção da Sputnik V.
Ela havia alegado que seria preciso mais tempo para entender a eficácia e a segurança do imunizante, que apesar de sofrer reservas de algumas autoridades como a Anvisa brasileira tem publicados dados em revistas de referência com resultados semelhantes aos das badaladas vacinas de RNA mensageiro americanas.
“Ainda não me convenci. Mas agora já avisaram no hospital que não será possível trabalhar sem a vacina”, disse ela, por meio de aplicativo de mensagem.
Essa resistência atinge 34% dos médicos russos, segundo pesquisa divulgada na semana passada pela associação da classe. Na população em geral, sondagens de institutos independentes sugerem que até 60% das pessoas não querem se vacinar.
O Centro Gamaleya, fabricante da Sputnik V, afirma que sua eficácia contra a variante indiana é similar à contra outras cepas do coronavírus e se aproxima de 100% nos testes de vida real. Estudos nesse sentido ainda precisam ser publicados, contudo.
As autoridades têm deixado claro o preço a pagar pela falta de vacinação, e não só nas ainda incipientes medidas moscovitas. “A realidade é que a discriminação virá inevitavelmente. Pessoas sem imunidade ou sem vacina não poderão trabalhar em qualquer lugar. É impossível, vai gerar uma ameaça para os outros”, afirmou nesta terça Dmitri Peskov, o porta-voz de Putin.
Ele havia sido questionado por repórteres acerca de queixas que chegaram ao escritório da ombudsman de direitos humanos do governo, Tatiana Moskalkova, para quem promover a vacinação de forma forçada seria “um jogo injusto”.
Peskov disse ter lido a declaração de Moskalkova, mas, para ele, a realidade se impõe. “Temos de reconhecer que o mundo ainda precisa descobrir uma abordagem unificada ou padrões para isso [os passaportes de imunidade]”, disse.
Já Anton Kotiakov, o ministro do Trabalho, disse também nesta terça entender que trabalhadores poderão ser suspensos caso se recusem a receber a vacina em regiões nas quais suas categorias forem obrigadas a recebê-la.
Com a situação rumando ao descontrole, 17 das 85 regiões russas, inclusive as mais populosas, reintroduziram restrições para o público em geral. Em Moscou, shoppings fecharam áreas de alimentação, cinemas tiveram capacidade reduzida e bares e restaurantes têm de fechar às 23h.
São Petersburgo foi na mesma linha e é um caso particularmente preocupante, com a circulação de turistas estrangeiros que vieram assistir aos sete jogos da Eurocopa sediados na cidade.
O próprio Putin alertou para o crescimento exponencial da doença em regiões mais distantes do país. Para ele, a combinação da terceira onda com a pouca vacinação traz também um prejuízo político razoável.
Ele promoveu pessoalmente a Sputnik V como instrumento de “soft power” num ano em que a Rússia está sob forte crítica do Ocidente pela repressão a opositores como Alexei Navalni e ações para pressionar a Ucrânia. O imunizante é o terceiro com maior número de autorizações de uso no mundo, em quase 70 países, inclusive o Brasil —embora a Anvisa tenha restringido seu emprego emergencial até ter mais dados sobre a vacina.