Bolsonaro e militares têm interesses iguais, diz politólogo

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Foto: Ricardo Lima/Estadão

Especializado na área militar, o cientista político e professor aposentado da Unicamp Eliezer Rizzo de Oliveira vê se desenhar “um cenário de crise” na movimentação política das Forças Armadas em relação ao voto eletrônico nas eleições de 2022. O exemplo é o da invasão do Capitólio por apoiadores de Donald Trump, inconformados com a vitória de Joe Biden, em janeiro – com peculiaridades brasileiras que aponta. Como a possível ação de “setores da sociedade armados e mobilizáveis”, que, diante de uma derrota de Jair Bolsonaro, produzam um “cenário de extrema violência”. “O protagonismo militar está em pleno ato.” Segundo ele, ocorreu em 2018 uma conexão de interesses entre uma espécie de partido militar “de extração verde-oliva” e a candidatura de Bolsonaro ao Planalto. A seguir, trechos da entrevista.

Como o sr. analisa o episódio de ameaça às eleições de 2022 enviada pelo ministro da Defesa, Braga Netto ao presidente da Câmara, Arthur Lira?
O episódio é nebuloso, já que o general Braga Netto o desmentiu e Lira não o teria confirmado, tampouco desmentido. No entanto, o deputado se inscreve entre as diversas personalidades que vieram a público para defender as eleições. Algumas criticaram duramente o general Braga Netto, com toda razão. E este também se manifestou: não teria formulado ameaça militar, não costuma mandar recados, mas falar diretamente com as autoridades políticas e – aqui o principal – ele se alinha ao voto impresso, que é o sonho autoritário de Bolsonaro. O ministro age como se fosse membro de um diretório nacional partidário. Sim, no caso, do partido verde-oliva que governa com Bolsonaro.

O voto eletrônico é realmente uma preocupação entre militares ou é uma chave que usam para interferir na política?
Imagino que haja militares a favor e contra o voto eletrônico. Mas não poderia dizer se eles associam suas posições às de seus comandantes militares. Bolsonaro, sim, tornou o voto impresso uma questão de condição para preservar a democracia: “sem voto impresso não haverá eleição”. Como, se a eleição é determinação constitucional? Vai colocar tanques nas ruas? Os comandantes cumprirão tal ordem inconstitucional? Espero que não, que cumpram a Constituição. Os governadores cruzarão os braços? Desenha-se mais um cenário de crise, a exemplo da invasão do Capitólio por trumpistas. Se agregarmos setores da sociedade armados e mobilizáveis, chegamos a um cenário de extrema violência que sugere golpe militar para controlar o caos social.

O que explica que as Forças Armadas, que foram as “grandes mudas” da política brasileira, de 1985 a 2018, voltem a querer ter o velho protagonismo?
As Forças Armadas foram valorizadas, de certo modo, e conviveram com o processo de reparação das vítimas da violência repressiva da ditadura militar: Lei e Comissão de Pessoas Presas e Desaparecidas e Comissão da Anistia. O presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Ministério da Defesa, contrariamente à vontade dos altos comandos militares. Mas estes se resignaram e não confrontaram o presidente. Foram adotados importantes documentos de Defesa Nacional – Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional – com a participação das Forças e relativa participação de políticos e acadêmicos.

O que aconteceu, então?
O ponto de virada, a meu ver, foi a combinação de crise política dos governos de Lula – corrupção – e Dilma – Comissão Nacional da Verdade. A CNV decorreu de um pacto não formalizado, mas efetivo, entre o governo Lula e os comandantes. Assim, a CNV devia investigar os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo Estado e também por pessoas e grupos políticos da luta armada, sem restrições. A CNV cumpriu parcialmente sua finalidade legal, pois investigou exclusivamente os delitos contra os direitos humanos cometidos por agentes públicos ou em conexão com eles. E não respeitou a anistia, embora tenha suavizado posições no relatório final.

E quais as consequências?
Em suma, o militarismo latente entre militares, da ativa e da reserva, sobretudo de clubes e associações, e civis veio à tona. Generais da reserva ameaçaram com o protagonismo militar, eufemismo de intervenção militar. Ocorreu então uma conexão de interesses entre uma espécie de partido militar de extração verde-oliva e a iniciativa do deputado Jair Bolsonaro para ser candidato à Presidência. Ele se notabilizara pela agressiva atuação parlamentar como defensor dos interesses profissionais dos militares, ainda que confrontando regulamentos e gerando desconforto às instituições castrenses. Tratava-se agora de enfrentar o “socialismo”, de impedir o retorno das esquerdas ao poder. Leia-se, de impedir Lula de ser candidato, daí a ameaça de intervenção militar do general Villas Bôas, em abril de 2018. Eleito Bolsonaro, uma das bandeiras deste governo civil com administração e domínio militares é precisamente impedir o retorno das esquerdas. E, se um candidato de esquerda, Lula ou outro, vier a ser eleito, será impedido por ação militar? Estaremos diante de um golpe de estilo clássico?

Esse movimento é iniciativa da liderança militar ou há um amplo consenso na tropa sobre a retomada do protagonismo político?
Comandantes de diversos níveis tornaram-se líderes políticos, os da reserva com toda liberdade. Assim, há sinais claros de uma intensa militância nos quartéis na direção do que apontei. Há generais que se incomodam com tal situação, pois identificam nela um perigo para o profissionalismo e o preparo militar para a defesa nacional. Porém, dada a situação atual, interessa a Bolsonaro a politização do meio militar, que lhe fornece uma base numerosa de eleitores.

O que explica tal processo?
A formação intelectual e profissional dos militares é fundada em valores conservadores no Brasil. Mas não necessariamente antidemocráticos. Bolsonaro levou os militares ao governo como prometera. Para preservá-los, compra-os com vantagens previdenciárias, recursos para a Defesa, acúmulo de vencimentos acima dos limites constitucionais, cargos e flexibilização absurda da permanência de militares em cargos civis. Quem participa desta militarização da administração tem motivo financeiro para se empenhar pela reeleição de Bolsonaro. Os quadros militares, tal como os quadros sindicais de Lula e Dilma ou intelectuais de FHC, exercem o poder de Estado. Ganham com isso, mas poderão perder. O desastre do Ministério da Saúde sob direção do general da ativa (Eduardo) Pazuello é evidência da militarização da administração, em confronto com a convicção no meio militar de que militares são administradores mais competentes do que civis. Até que aparece um esquema corruptor para desmentir.

Trata-se de um anacronismo, um desejo de volta ao passado de prestígio e força dos militares, ou vontade de mudar o futuro das Forças Armadas, transformando os militares novamente em atores políticos?
Uma capa superior das Forças Armadas, do Exército com todo destaque, é formada por atores políticos. Mas em outros níveis também. Alguns são intelectuais que elaboram interpretações sobre o passado, o presente e o futuro, defendendo o direito das Forças Armadas à intervenção militar, ainda que sem base legal.

Há um projeto de Brasil aí?
Identifico um projeto de Estado danoso: antissocial; autoritário; ultraliberal; promotor do armamento da população como uma espécie de segurança pública privada; negacionista da ciência e da educação pública; controlador do pensamento científico; confrontador da institucionalidade democrática, dos poderes da República, do voto, das eleições. Em Fascismo Eterno, Umberto Eco sugere que tais atitudes e perspectivas são “nebulosas fascistas”, um namoro com o autoritarismo.

Quais poderão ser as consequências para as Forças de um eventual retorno do protagonismo militar na política?
O protagonismo militar está em pleno ato. A consequência inevitável é a politização dos mais diversos meios e instituições militares. Para contê-la, poderá ocorrer um acirramento da disciplina e do controle político nos quartéis.

E para o País?
Não bastaria afirmar que esta situação faz mal ao Brasil e representa um risco gravíssimo à democracia. Devemos ir além. Os candidatos à eleição presidencial de 2022 precisam firmar posição sobre o que pretendem fazer com as Forças Armadas, os militares, os policiais, a defesa nacional e a segurança pública. Não bastam palavras soltas ao ar. É fundamental a apresentação de programas com planos, métodos, metas. A saída da presente militarização da administração federal não será uma tarefa dos militares, mas dos políticos previdentes e com a participação necessária das Forças Armadas institucionais. Pois elas existem e cumprem suas funções no dia a dia. Em tempo, é fundamental que candidatos progressistas reafirmem a Lei da Anistia. Ignorá-la tem sido um erro das esquerdas.

Estadão  

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