Empresa do consórcio da Covaxin deu calote no governo em 2017
Foto: Ueslei Marcelino
O Ministério da Saúde apontou que o mesmo grupo empresarial que vendeu a vacina indiana Covaxin na pandemia de Covid-19 havia enganado o governo federal em um negócio de R$ 20 milhões feito em 2017 por medicamentos jamais entregues.
O contrato foi firmado quando o ministro era Ricardo Barros, hoje deputado (PP-PR) e líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara, com a empresa Global Gestão em Saúde —sócia da Precisa Medicamentos, representante da Covaxin no Brasil.
Em 2019, quando cobrava a devolução da verba, a Saúde afirmou que a Global havia usado “expedientes procrastinatórios e obscuros” e induzido o governo a acreditar que os medicamentos seriam entregues.
As afirmações do ministério estão registradas em processo obtido pela Folha que trata da devolução dos valores recebidos pela empresa. A Saúde afirma que R$ 2,8 milhões foram ressarcidos ao governo desde 2018.
O processo mostra irritação do ministério com a empresa. Técnicos da pasta apontaram “perplexidade” com a “desfaçatez” de uma tentativa da Global de dividir em 60 vezes o reembolso e ainda aliviar a dívida com serviços de consultoria ao governo. O combinado era pagar em quatro parcelas.
Para a Saúde, a empresa descumpriu sistematicamente as suas obrigações no contrato e fez esforços apenas para garantir o pagamento antecipado pelos produtos que não foram entregues.
“Ademais, a negociação feita com condição excepcional de pagamento antecipado também nos faz crer, pelo conjunto de elementos contidos nos processos, pela reiterada e sistemática prática protelatória e desidiosa, que intencionalmente essa empresa, sem lastro logístico, operacional e jurídico, que lhe amparasse na execução do objeto contratual, engendrou esforços tão somente em angariar o recebimento dos quase 20 milhões de reais”, escreveu a área técnica do ministério em fevereiro de 2019.
Barros, a Global e servidores da Saúde à época respondem a uma ação de improbidade por causa dos medicamentos não entregues. O MPF (Ministério Público Federal) aponta que houve favorecimento à empresa.
O caso da Global entrou no radar da CPI da Covid no Senado por causa das possíveis irregularidades na compra da Covaxin. Os congressistas querem saber se o mesmo grupo de empresários foi beneficiado tanto em 2017 como agora na pandemia, e se houve participação de Barros nas duas compras.
Presidente da Global, Francisco Emerson Maximiano, conhecido como Max, também é sócio da Precisa. Ele será ouvido pela CPI, mas poderá ficar em silêncio por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
Max assina os principais documentos tanto na negociação da Global como da Precisa com o ministério.
A existência de denúncias de irregularidades em torno da Covaxin foi revelada pela Folha no dia 18 de junho, com a divulgação do depoimento sigiloso do servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda ao MPF.
Esse mesmo servidor e seu irmão, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), disseram à CPI que alertaram Bolsonaro sobre as supostas irregularidades.
Já a compra da Global foi um dos contratos fechados pela gestão de Barros com distribuidoras de medicamentos que não eram representantes das fabricantes. A sócia da Precisa foi a única que recebeu o valor antecipadamente.
O então ministro do governo Michel Temer (MDB) alegava que a ideia era quebrar o monopólio das grandes farmacêuticas e cortar despesas da Saúde, mas os medicamentos não foram entregues.
Na ação em que Barros é réu, o MPF aponta que ao menos 14 pacientes de doenças raras morreram e centenas tiveram piora no quadro de saúde pelos “atrasos injustificados” das empresas contratadas.
Barros culpava a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) pelo fracassos nas entregas. Para ele, o órgão brecou importações para favorecer as grandes empresas.
Já a agência rebateu os argumentos do então ministro e afirmou que a documentação exigida era um escudo para impedir a entrada de medicamentos falsos no Brasil.
Barros chegou a orientar que pacientes fossem à Justiça contra a Anvisa. O ministro repetiu a briga com a agência durante a pandemia, quando a acusou de travar a liberação de vacinas contra a Covid.
Apesar de receber antecipadamente e não entregar os medicamentos, a Global só foi punida em 2018, com a suspensão de licitar por três meses.
No fim de junho deste ano, porém, o ministério aplicou multa de R$ 544 mil à Tuttopharma, outra distribuidora contratada no mesmo período e que também não cumpriu com o prometido.
A rescisão amigável do contrato com a Global foi criticada em junho de 2020 pela consultoria jurídica do Ministério da Saúde. O setor afirmou que havia “diversas irregularidades” no negócio, mas cinco meses depois a pasta abriria negociação com a Precisa para a compra da Covaxin.
Em março, a área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) afirmou que o fato de a Global ser ré pelo contrato de 2017 não impede a sua sócia, Precisa, de vender a Covaxin ao governo.
“Esses graves episódios em que estão envolvidas as empresas citadas exigem cautelas redobradas da administração pública, especialmente no que diz respeito à gestão e à execução do contrato firmado”, ponderou a Secretaria de Controle Externo da Saúde do tribunal.
Barros nega qualquer favorecimento à Global ou participação na compra da Covaxin. Ele pede para ser ouvido o quanto antes pela CPI para apresentar a sua versão.
“Não participei de qualquer negociação para a compra desse produto. O dono da Global já informou que a ultima vez que nos encontramos foi quando eu era ministro”, disse Barros, em nota.
Procurada, a Global não se manifestou.
Nos diálogos com a Saúde desde 2017, a empresa apresentou cartas alegando que se esforçou para entregar os medicamentos, mas foi boicotada pela indústria farmacêutica e pela Anvisa.
“Entendemos que estávamos envolvidos em uma teia que visava apenas atrasar nossos objetivos, buscando aumentar a pressão por conta dos prazos e assim fazer com que desistíssemos”, disse a empresa ao ministério em setembro de 2018, quando propôs a rescisão do contrato.
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