Acusado no mensalão lança documentário se defendendo
Inocente, Josef K. desistiu de lutar contra o arbítrio da “máquina da Justiça” kafkiana que lhe imputara um crime obscuro, e pagou com a vida. Também inocente, mas ao contrário do protagonista de O Processo, Henrique Pizzolato tem se rebelado nos últimos 15 de seus 68 anos diante da perseguição movida contra ele pelas autoridades responsáveis pela Ação Penal 470, do “mensalão”, por um “crime impossível”.
Originada de manobras promovidas por agentes da Justiça ao atropeo da lei e da Constituição, a epopeia do ex-presidente da CUT-PR e do Sindicato dos Bancários em Toledo (PR) para provar sua inocência transcorre até hoje pela burocracia do Judiciário brasileiro.
A saga se desenrola a partir de uma trama criada para desgastar politicamente um partido e seu projeto de nação, conta com personagens venais glorificados por repórteres inescrupulosos ávidos para agradar aos patrões, foi açulada por comentários histéricos nas redes televisivas e sociais e agravada pela fuga dos amigos, execração pública, “cancelamento” e sentimento de impotência diante do Leviatã estatal.
Condenação, depressão, fuga para outro país, captura, extradição e prisão. No fundo do poço, o herói encontra forças para prosseguir, com apoio da esposa, poucos familiares e alguns desconhecidos. Obtém o indulto, mas ainda deve pagar uma multa impagável.
O que já deveria ter se encerrado continua se arrastando, e com alguns dos elementos originais, como a mentira e a manipulação de evidências. Com enredo digno da ficção, a história deveria – e vai – virar filme. Mas sobre a vida real.
O Caso Pizzolato: Por uma Questão de Justiça está em processo de produção pela Caliban Produções Cinematográficas, do premiado documentarista Sylvio Tendler. Uma campanha de arrecadação foi promovida no final de abril pelos canais Stop Bolsonaro Mundial, Iaras e Pagus, e outras se seguirão. Veja o teaser abaixo.
Pizzolato, afirmam os produtores do filme, é uma das primeiras e principais vítimas de uma onda de “macartismo-tupiniquim” que se intensificou no país a partir da AP 470 no Supremo Tribunal Federal (STF).
A onda se sofisticou, recebeu apoio logístico ianque e atingiu o ápice com a operação lava jato, consolidando no Judiciário nacional a prática do lawfare, a guerra não convencional que emprega contra os inimigos artifícios jurídicos e midiáticos, em vez de exércitos e armamentos.
“O objetivo deste documentário é aprofundar sobre os detalhes e as circunstâncias específicas dessa história na vida pessoal de Pizzolato e sua família: os sucessivos julgamentos, condenações, perseguições e as prisões sofridas por Henrique (com reflexos devastadores para a sua família também) ao longo desses últimos 15 anos”, prosseguem os produtores do filme no texto de apresentação do material.
O ovo da serpente
Catarinense descendente de italianos e envolvido desde sempre nas lutas dos trabalhadores, Pizzolato foi eleito pelos funcionários do Banco do Brasil (BB) diretor de Seguridade do fundo de pensão do banco, Previ, em 1998. Filiado ao PT, deixou o cargo em maio de 2002, para trabalhar na eleição do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2003, assumiu o cargo de diretor de marketing do BB. Dois anos depois, tornou-se alvo tático na trama que o atormenta até hoje.
“O ovo da serpente (do antipetismo) começou em 2005. Eu diria que começou já em 2002, e em 2005 começa a se revelar”, afirmou Pizzolato nessa quarta-feira (4), em live com os jornalistas Víctor Pino e Cesar Calejon no programa A tempestade perfeita, do canal TV Democracia no Youtube.
“O Banco do Brasil adotou nos anos 1990 um método de gestão compartilhada que é até hoje um dos mais modernos e eficientes”, explicou. “Quem demanda um produto não é quem compra, quem compra não é quem paga, quem paga não é quem fiscaliza, e todas as decisões são tomadas em grupo. Por isso, o crime que eles me atribuíram é um crime impossível.”
Embora não detivesse prerrogativa de foro, Pizzolato foi denunciado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, juntamente com outras 39 pessoas. O emblemático número de 40 acusados foi o ponto de partida da narrativa empregada pela acusação, em conluio com a imprensa corporativa, para desgastar politicamente o governo Lula.
O então ministro da Suprema Corte Joaquim Barbosa conduziu o inquérito e foi o relator da ação no julgamento em plenário. Para o ex-diretor do BB, todo o processo tornou-se uma espécie de “laboratório” no qual foram testadas diversas táticas, nem sempre lícitas, posteriormente utilizadas por Sergio Moro e a força-tarefa da lava jato.
“Primeiro desrespeitaram o princípio do juiz natural e me tolheram o direito de ser julgado na primeira instância”, relembra Pizzolato. “Foi na verdade um pelotão de fuzilamento, um juízo de exceção, para que se pudesse fechar uma mentira e essa mentira fosse contada e repetida dezenas, centenas e milhares de vezes até que as pessoas, de boa fé ou de má fé, acreditassem.”
Segundo ele, a “grande fake news do Judiciário brasileiro” foi montada sobre três pilares: os recursos da Visanet eram do Banco do Brasil; esses recursos (R$ 73 milhões) foram desviados para o “mensalão” da compra de votos de deputados; ele era a pessoa responsável por administrar esses recursos.
Em 2006, o laudo 2828, solicitado pelo próprio PGR Antonio Fernando e assinado por três peritos do Instituto de Criminalística da Polícia Federal, demonstrou cabalmente a inocência de Pizzolato e a quem competia fazer o gerenciamento dos recursos do Fundo Visanet: quatro diretores e quatro gerentes do Banco do Brasil.
Nenhum dos dirigentes do BB foi arrolado na AP 470 e o laudo foi, estranhamente ou convenientemente, omitido pelo juiz relator Joaquim Barbosa, o “Batman” justiceiro criado para alimentar o ódio ao PT no imaginário popular. Em 2013, Pizzolato foi condenado no STF pelos crimes de peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
No mesmo ano, já havia provas que poderiam destruir a trama. Em matéria para a Carta Maior, a jornalista Maria Inês Nassif escreveu: “Antonio Fernando de Souza e Joaquim Barbosa criaram em 2006, e mantiveram sob segredo de Justiça, dois procedimentos judiciais paralelos à Ação Penal 470. Por esses dois outros procedimentos passaram parte das investigações”.
“Esses dois inquéritos receberam provas colhidas posteriormente ao oferecimento da denúncia ao STF contra os réus do mensalão, em 30 de março de 2006. Pelo menos uma delas, o Laudo de número 2828, do Instituto de Criminalística da Polícia Federal, teria o poder de inocentar Pizzolato”, concluiu a jornalista.
“Cavalo de pau” jurídico
A AP 470 gerou uma série de outros processos na Justiça, aos quais Pizzolato responde até hoje. O mais recente envolve inclusive outro laudo que o inocenta e desmantela a trama original, mas uma juíza da 20ª Vara Cível de Brasília o “deletou” do processo.
“Em cima da mentira original de que os recursos da Visanet eram do Banco do Brasil, mesmo que o banco tenha afirmado durante toda a ação que não eram, o próprio banco resolveu entrar com uma ação pedindo a restituição desse dinheiro, que não lhe pertencia”, conta Pizzolato.
Munido do acórdão da AP 470, que não definiu os danos materiais gerados pelo suposto crime, o BB ajuizou em 2015 uma ação de liquidação de sentença penal contra Pizzolato para apurar o “valor dos danos causados pela infração”.
O perito nomeado pela juíza apresentou Laudo Pericial Contábil Judicial ratificando que os recursos supostamente desviados pertenciam à Visanet e não ao BB, e que Pizzolato não era o responsável e muito menos autorizou repasses desses recursos.
Mas em fevereiro deste ano, a juíza emitiu decisão afirmando que “o laudo pericial está em contradição com o acórdão (da AP 470) e chega até mesmo a violar a coisa julgada”. A magistrada requereu ao perito a produção de um novo laudo, atualizando valores fixados monocraticamente pela própria.
O perito então apresentou dois cenários para a “restituição” dos valores ao BB. Em um deles, Pizzolato deverá pagar R$ 47 milhões ao banco. No outro, R$ 306 milhões. O BB apresentou impugnação ao laudo e atualizou os valores por outros índices, chegando à soma de R$ 583.934.182,61.
“O juízo quer dar um cavalo de pau na perícia requerida pelo próprio banco e que revelou que, quanto ao alegado desvio de recursos do BB, o bancário Henrique Pizzolato não tem nenhum envolvimento com o esquema levado ao Supremo para iniciar uma verdadeira demolição do governo petista”, denunciou em março o advogado Paulo Borges.
“Quando viu a verdade estampada no laudo pericial contábil judicial, a juíza se deu conta do tamanho da mentira que foi a AP 470 e viu que esse processo aberto pelo próprio banco é uma bomba, pois revela a farsa montada no julgamento do STF, pelo menos no que diz respeito ao bancário Henrique Pizzolato”, concluiu o advogado, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Em outra frente, o ministro do STF Luis Roberto Barroso concedeu a Pizzolato o indulto da pena privativa de liberdade em dezembro de 2020. Porém, até hoje não atendeu ao pedido da defesa para que seja expedido alvará de extinção da punibilidade e para que a Polícia Federal retire as restrições ao direito de livre locomoção.
Barroso requereu manifestação da PGR, e o órgão recomendou que fosse exigido o pagamento da multa penal e que não se devolvesse o passaporte ao ex-diretor do BB. Condicionada a efetivação do indulto ao pagamento da multa, na prática Pizzolato estará formalmente condenado à prisão perpétua por dívida. E o ciclo de ódio e mentiras contra um petista vai se perpetuando.
Resiliência, anjos e miliagres
“Acho que eles esperavam que eu não resistisse e morresse logo, levando a minha história para o túmulo para não confrontá-los”, comentou Pizzolato. “É disso que brota o bolsonarismo: o lado perverso, um pouco primitivo e animal que as pessoas liberam nesses momentos.”
Segundo o ex-dirigente sindical, é preciso sufocar quem não se submete a esse instinto selvagem. “Eles querem punir o fato de eu não ter sido dócil. Condenaram inocentes e abriram a estrada para o período de destruição que o Brasil está vivendo hoje.”
Para o jornalista Breno Altman, o mensalão não fecharia se Pizzolato, um petista que ocupava um cargo estratégico em uma estatal, não fosse envolvido. “Essa fraude contra Pizzolato era necessária para construir a narrativa política/judicial”, argumenta.
“A imprensa monopolista tratou de deixar sempre invisível o ‘caso Pizzolato’ porque temia que a partir de uma investigação séria, todo o edifício do mensalão viesse abaixo”, escreveu o jornalista. “Ser solidário e lutar por Pizzolato faz parte de uma batalha mais geral que é colocar por terra o mentirão – nome que efetivamente deveria ter a AP 470.”
Agora, a história será contada em filme enquanto ainda se desenrola. O desfecho, diz o hoje servidor aposentado do Banco do Brasil, será feliz.
Seminarista na juventude, Pizzolato acredita em anjos e em milagres. Os identifica nos pequenos gestos cotidianos de empatia ao longo de sua desventura e também nas correntes de solidariedade que vêm se formando em apoio à sua luta pessoal, mas também coletiva, para restituir a verdade dos fatos. A crença, e o apoio incondicional da mulher, Andrea Haas, o motivaram a perseverar, apesar de todos os dissabores.
“Não posso ser cúmplice dessa mentira, por isso me rebelei contra a sentença”, afirmou Pizzolato em entrevista ao site O Cafezinho. “Além dos danos para mim e toda a minha família, era um dano para a sociedade, ao país e às instituições. Mas a verdade um dia vence.”
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