Aliado de Pazuello colapsou Roraima mesmo com dinheiro em caixa

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Foto: Andressa Anholete/Bloomberg via Getty Images

Airton Antônio Soligo, ou Airton Cascavel, como é mais conhecido, passou pouco tempo desempregado depois que deixou o Ministério da Saúde, em 24 de março passado. O empresário, que foi assessor especial da pasta durante a gestão do amigo Eduardo Pazuello, foi exonerado do cargo na mesma data em que o general da ativa saiu do ministério.

Cascavel tomou posse como secretário de Saúde de Roraima no dia 3 de maio. Ele ficou no cargo por menos de três meses, até 22 de julho, mas foi tempo suficiente para reduzir a quantidade de vagas destinadas a pacientes com covid-19 nos hospitais públicos, embora tenha recebido uma verba milionária do governo federal para mantê-las.

Quando Cascavel assumiu o cargo, a taxa de ocupação de leitos de UTI era de apenas 44% – havia 90 disponíveis e, destes, apenas 40 estavam com pacientes. Mas, já em 27 de maio, em entrevista à imprensa, o então secretário avisou que a capacidade de atendimento a doentes de covid-19 tinha chegado ao limite. “Atingimos a zona vermelha. Temos a capacidade quase que totalmente tomada e esse é um fator preocupante neste momento”. Ele só não contou que escolheu deixar o estado nessa situação.

O colapso do sistema de saúde do estado entre maio e junho, quando cerca de 80% das vagas de UTI e todos os leitos para casos menos graves estavam ocupados, não foi provocado por falta de dinheiro. Quando fez a declaração em tom alarmista, Cascavel já tinha recebido do Ministério da Saúde, em 24 de maio, R$ 4,32 milhões para investir justamente na manutenção dos leitos de UTI para pacientes de covid-19 no Hospital Geral de Roraima, o HGR, do dia 1º ao 30 de maio. Mesmo que a Secretaria de Saúde tenha recebido o dinheiro somente na última semana do mês, essa era a condição para utilizar o recurso: garantir 90 leitos por 30 dias em maio.

De acordo com dados dos boletins epidemiológicos, Roraima só teve os 90 leitos de UTI disponíveis até o dia 21 daquele mês. A partir do dia seguinte, Cascavel decidiu cortar 30 leitos (um terço do total). A portaria assinada pelo ministro Marcelo Queiroga dispõe que o dinheiro, que corresponde a uma diária de R$ 1.600 por leito (o valor padrão pago pelo governo federal para todos os estados e municípios), deveria ser usado integralmente para esse fim. Mas o secretário de Saúde de Roraima descumpriu a ordem e escolheu diminuir a quantidade de leitos, mesmo já sabendo que teria o dinheiro em caixa, como informado em outras portarias, publicadas em 19 e em 26 de março. Se Cascavel tivesse gastado a verba como determinado, a taxa de ocupação das UTIs não teria ultrapassado os 53% em maio, e o estado nunca teria atingido a “zona vermelha”.

A portaria que liberou a transferência de verba para custeio de UTIs é bem específica. O artigo 1º diz que o recurso é exclusivo para este fim, com uso obrigatório no mês de maio. “O descumprimento dessas regras”, acrescenta o artigo 3º, “ensejará a devolução dos recursos recebidos”. Tendo reduzido em um terço a quantidade de vagas de UTI previstas por nove dias, seria necessário que o estado devolvesse R$ 432 mil ao Ministério da Saúde.

Questionei a Secretaria de Saúde sobre o que foi feito com esse dinheiro, mas não tive resposta. O órgão alegou que os leitos são oferecidos de acordo com a demanda. A questão é que havia, sim, demanda. Ela foi reconhecida pelo próprio secretário, quando ele disse que o estado tinha chegado “ao limite”. Além disso, o plano de contingência para enfrentamento da pandemia, elaborado pelo governo de Roraima em março de 2020, definiu que medidas urgentes precisariam ser tomadas, caso os leitos disponíveis no hospital de referência para pacientes com a covid-19 chegassem a “70% de sua capacidade de admissão de internação”. A principal delas era aumentar o número de leitos em caráter emergencial, o que só não aconteceu pela negligência de Cascavel.

Na verdade, ocorreu exatamente o oposto. O então secretário de Saúde não aumentou o número de leitos em nenhum momento. Com a redução das vagas, tanto nas UTIs quanto nos leitos clínicos, a taxa de ocupação mais que dobrou a partir de 22 de maio – saiu dos confortáveis 37% no início do mês e chegou a 83% no dia 24.

Em 26 de maio, a imprensa do estado registrou o caos no HGR, único hospital público que atende pacientes adultos com covid-19 em estado grave e a unidade que deveria ter mantido os 90 leitos financiados pelo Ministério da Saúde. “Imagens feitas por servidores mostram doentes em macas até sem colchão”, diz a reportagem. “O hospital está lotado de gente. É desesperador. Como se a pandemia começasse hoje”, resumiu uma servidora que foi entrevistada pelo G1 Roraima.

Ao ser questionada sobre a devolução dos R$ 432 mil que não foram gastos como deveriam, a Secretaria de Saúde de Roraima afirmou que “o recurso federal foi disponibilizado somente no mês de maio, e de janeiro a abril, todas as despesas foram arcadas com recursos do governo estadual. O Ministério da Saúde não cobrou a devolução de recursos [destinados a manter as UTIs em maio]. E, dessa forma, o recurso foi usado para ressarcir os gastos do período em que Roraima ficou sem repasse federal”. Ou seja: o governo do estado resolveu gastar de outro modo uma verba federal que tinha finalidade específica.

Diferente do que alegou a Secretaria de Saúde de Roraima, o Ministério da Saúde não precisa cobrar para que o recurso não utilizado seja devolvido. “A comprovação da aplicação dos recursos é feita pelos gestores de Saúde, por meio do Relatório de Gestão”, me disse a assessoria do órgão federal. Esse relatório é analisado pelo Conselho Estadual de Saúde e apresentado ao Ministério da Saúde.

Segundo Manoel Galdino, doutor em Ciência Política e diretor executivo da Transparência Brasil, o então secretário Cascavel poderia responder por improbidade administrativa. “Essa verba tem uma rubrica [destinação] específica e não pode ser usada para fora do que foi aprovado”.

Entrei em contato com Cascavel por telefone e WhatsApp, mas ele não atendeu às minhas ligações, nem respondeu às mensagens.

Via assessoria de imprensa, o Ministério da Saúde informou que, somente a partir de junho, o governo de Roraima passou a receber recurso por apenas 54 leitos de UTI para pacientes com a covid-19, o que representa R$ 2,59 milhões por mês. Em maio, o valor referente aos 90 leitos – R$ 4,32 milhões – foi transferido integralmente

Dono de fazendas, de empresa de alimentação, de motéis e de franquias em shoppings em Boa Vista e Manaus, Airton Cascavel usou o sucesso na carreira empresarial para se aventurar na política. Deu certo. O empresário já foi prefeito de Mucajaí, no interior de Roraima, depois se elegeu deputado estadual pelo PTB e chegou à presidência da Assembleia Legislativa. Foi ainda vice-governador de Roraima e deputado federal. Por onde passou, Cascavel não deixou boas referências. Há denúncias contra ele por corrupção passiva, grilagem de terras e nepotismo.

A mais recente é por estupro de vulnerável. O caso veio à tona em maio, mas o inquérito policial começou em janeiro de 2019, quando a vítima tinha 13 anos – no Brasil, a idade mínima de consentimento a um ato de natureza sexual é 14 anos. De acordo com o site O Poder, de Roraima, a denúncia foi feita pela mãe da menina na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente.

Em depoimento, segundo a reportagem, a menina estava na chácara onde moram o avô e o pai. Foi abordada por Cascavel quando foi à piscina. “Ao notar que a garota estava com os ‘lábios manchados’, Cascavel, ainda segundo relatos da vítima, quis saber o que havia acontecido e passou os dedos em seus lábios. Ela explicou que a mancha foi causada pela exposição ao sol após ‘chupar limão com sal’. Ainda conforme o depoimento da adolescente, após responder a Airton Cascavel, ele segurou o seu queixo e passou a língua em seus lábios”.

À polícia, diz a reportagem, ele negou as denúncias e disse que, “ao ver uma espuma branca na boca da garota, quis apenas confirmar se a história contada por ela procedia ou se a mancha teria sido causada pelo uso de entorpecente”.

Cascavel ainda é investigado pelo Ministério Público Eleitoral em Roraima por ao menos duas denúncias de compra de votos na eleição de 2018. Uma delas, de acordo com a investigação, aconteceu na terra indígena Raposa Serra do Sol. O objetivo era favorecer o atual governador Antonio Denarium, do PSL, que garantiu o cargo de secretário ao empresário depois que ele foi exonerado do Ministério da Saúde.

Já em sua passagem pelo Ministério da Saúde, Cascavel está sendo investigado pela Polícia Federal, a PF, por usurpação de função pública, ou seja, por atuar como um gestor público sem ter vínculo formal. A denúncia é de que o empresário atuou informalmente na pasta. Desde maio de 2020, antes de ser nomeado em junho, ele teria interferido em decisões importantes relacionadas à pandemia. De acordo com fotos apresentadas ao Ministério Público Federal, que ordenou a abertura de inquérito na PF, Cascavel já participava de ações com prefeitos e secretários estaduais de Saúde e de discussões sobre a compra de respiradores.

Quando assumiu o cargo oficialmente, ele era considerado como o “ministro de fato”. Segundo uma reportagem da revista Veja, era Cascavel quem “desenrolava a maior parte das pendências burocráticas e demandas logísticas com os estados e municípios, como entrega de respiradores, lotes de vacina, equipamentos para leitos de UTI, negociações com laboratórios”. A Polícia Federal investiga a suspeita desde dezembro de 2020.

A CPI da Covid aprovou, no final de maio, um requerimento para convocar Cascavel. Ele tem grande influência entre políticos de Roraima e do Amazonas e é amigo de Pazuello desde que o general do Exército coordenava a Operação Acolhida. O depoimento do amigo íntimo do general e ex-secretário de Saúde de Roraima acontece nesta quinta, 5 de agosto, às 9h e pode ser considerado um dos mais importantes para essa nova temporada da CPI.

Correção: 4 de agosto, 17h08
Uma versão anterior deste texto afirmava que Airton Cascavel assumiu a Secretaria de Saúde de Roraima 10 dias após sair do Ministério da Saúde. Na verdade, ele se tornou secretário de Saúde pouco mais de um mês depois. A informação foi corrigida.

The Intercept  

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