Brasil tem falta de mão-de-obra mesmo com desemprego alto
Foto: Igor do Vale/Folhapress
O fenômeno da escassez de mão de obra que atingiu os EUA na pandemia preocupa setores empresariais brasileiros, que receiam estar diante de um cenário com alguma semelhança.
A despeito do desemprego elevado, negócios nas indústrias de calçados, confecções, náutica, farmacêutica e até restaurantes relatam diferentes níveis de dificuldade para preencher vagas novas ou reabertas. A avaliação é que os trabalhadores podem ter migrado para outras cidades ou atividades no último ano.
Afetados pela redução nas vendas de calçados por causa da quarentena, os pólos calçadistas de Franca e Jaú, em São Paulo, agora vislumbram a retomada, mas enfrentam dificuldade para readmitir os trabalhadores dispensados na crise, segundo Haroldo Ferreira, presidente da Abicalçados (associação do setor).
Pelas previsões de Ferreira, a situação deve se normalizar nos próximos quatro meses, que é o tempo de formação de novos profissionais no ramo.
Para Rafael de Souza, sócio da rede de sapatos masculinos Fascar, outros mercados como o telemarketing podem ter atraído os trabalhadores mais jovens em Franca. Marcel Savelli, diretor da fabricante de calçados Savelli, vê as empresas de aplicativo como fortes competidoras pela mão de obra.
“Está bem complicado. Estamos com dificuldade de encontrar mão de obra tanto já qualificada e quanto sem qualificação. A pandemia acentuou, mas já vínhamos sentindo isso antes. A indústria foi sucateada e deixou de ser atrativa para o jovem”, diz Savelli.
O boom registrado pelos fabricantes de barcos de luxo, que tiveram fila de espera de compradores, enfrentou gargalo na contratação de mão de obra qualificada. A suspensão dos cursos presenciais agravou a situação, segundo Airton Said, diretor da Acatmar, associação que reúne estaleiros e marinas.
“A nossa mão de obra ainda é artesanal e precisa ser qualificada. Neste momento, temos alta de 30% na demanda de construção de barcos em comparação com anos anteriores, sem pandemia”, afirma Said. Ele diz ter visto parte dos funcionários jovens migrando para a área de tecnologia e profissionais mais experientes começando a empreender.
No segmento de confecções, também há relatos de dificuldade na contratação, casos de absenteísmo e afastamento de gestantes, mesmo que vacinadas contra a Covid, segundo Fernando Pimentel, presidente da Abit (associação do setor têxtil).
Na indústria farmacêutica, os relatos de escassez de mão de obra qualificada aparecem nas áreas de compliance e tecnologia da informação, afirma Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma.
Até no setor de restaurantes, tido como importante porta de entrada de jovem no mercado de trabalho, os demitidos migraram para aplicativos, construção civil ou foram empreender com a venda marmita feita em casa, segundo Paulo Solmucci, presidente da Abrasel (associação dos bares e restaurantes). Ele diz que também houve um fluxo para cidades do interior.
O outro efeito colateral da crise neste mercado foi o ganho de produtividade, segundo Solmucci. “Onde trabalhavam 10, hoje trabalham 8. Não voltaremos ao mesmo número de empregos, mesmo que o setor retome o faturamento de 2019 neste semestre”, afirma.
A economista Cecilia Machado, colunista da Folha, afirma que a situação é mais nítida nos EUA, mas aqui deve acontecer também em algum grau. Existe uma percepção de que pode ter ocorrido um descasamento na pandemia provocado pelo deslocamento geográfico ou de atividade.
“O setor de serviços mudou com a tecnologia. Talvez um restaurante não precise mais de tanta gente servindo, porque as pessoas pedem mais em casa. Aí precisa ter uma mão de obra um pouco diferente, que tem de entender também do pedido do iFood, de olhar um sistema. Não é exatamente a mesma coisa. Pode ter esse descasamento”, afirma.
Machado afirma que a mão de obra leva um tempo para se realocar, ou seja, o trabalhador de uma atividade específica não entra instantaneamente em outra. E, neste momento, há setores diferentes demandando em quantidades também distintas. Algumas profissões são mais substituíveis do que outras.
“Está muito claro nos EUA que as pessoas saíram das grandes cidades porque o trabalho poderia ser feito remoto. Aqui não é tão claro que isso aconteceu porque nem todo trabalho pode ser feito de forma remota. O presencial vai voltar muito mais fortemente aqui”, afirma a economista.
Uma outra explicação pode estar no medo do contágio. Enquanto houver pessoas com receio da pandemia, elas se sentirão inseguras para o trabalho, segundo a economista. Machado ressalva que o sentimento de insegurança capaz de levar o trabalhar a rejeitar uma vaga depende do nível de conforto de renda.
“Nos EUA, as pessoas colocam esse argumento por causa do plano Biden. Aqui isso não está acontecendo, a gente não tem mais aquele auxílio emergencial. É muito improvável essa explicação aqui. Acho que é possível o medo da variante. Mas ele encontra um limite no quanto as pessoas conseguem se sustentar sem trabalhar”, diz.
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