Especialistas explicam limite à liberdade de expressão

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Foto: Evaristo Sá

Em meio à radicalização e escalada do discurso golpista do presidente Jair Bolsonaro, estão sendo organizadas manifestações para o próximo dia 7 de setembro que têm entre suas bandeiras a destituição de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), invasão do Senado, violência contra autoridades públicas e intervenção militar.

Parte da tentativa de frear uma ameaça golpista e uma fragilização irreversível da democracia tem partido majoritariamente do Judiciário. Recentemente, por determinação do STF, o presidente do PTB Roberto Jefferson foi preso preventivamente e o cantor Sérgio Reis, alvo de medidas cautelares.

Advogados e professores de direito consultados pela Folha apontam que, se de um lado há de fato discursos que ultrapassam os limites da liberdade de expressão, na maioria das situações, outros fatores, além da fala por si só, precisam ser considerados para que as condutas sejam criminalizadas e não se abram precedentes perigosos.

A liberdade de expressão é absoluta? Ela pode ser usada para defender o fim da democracia? Entre os direitos fundamentais garantidos pela Constituição estão a liberdade de expressão e de manifestação. Nenhum dos dois direitos, entretanto, é absoluto, sendo preciso balanceá-los e delimitá-los, em caso de conflito com outros direitos.

E é na relativização que mora um complicado debate jurídico, pois há entendimentos muito distintos do que está ou não protegido.

No contexto atual, questiona-se por exemplo se defender o fechamento do STF ou mesmo uma intervenção militar extrapolaria este direito.

“A democracia não pode aceitar aquilo que meus colegas chamam de discursos suicidas, ou seja, aqueles discursos que não sejam meras defesas de teses, mas ações que pregam a sua própria extinção. Seria um paradoxo do qual não se teria saída”, diz o professor de história do direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Diego Nunes.

O professor de direito da UFLA (Universidade Federal de Lavras) Leonardo Penteado Rosa diz que outros elementos precisam ser analisados.

Na decisão de Moraes que determinou a prisão de Roberto Jefferson, ele considera, por exemplo, que por ser uma opinião do campo político, não haveria abuso em falas defendendo que Bolsonaro deveria usar o artigo 142 da Constituição para uma intervenção militar, mas pondera que a situação muda quando Jefferson usa expressões como “temos que agir agora”, “concentrar as pressões populares”, “invadir o Senado” e “colocar pra fora a CPI a pescoção”.

“Caso haja evidência de que o Roberto Jefferson está se unindo a outras pessoas para empreender essas ações, ele de fato está abusando da liberdade de expressão”, afirma.

O que alegam apoiadores de Bolsonaro? Parlamentares, pessoas públicas, blogueiros e donos de canais de grande audiência nas redes sociais que apoiam o presidente estão entre os alvos de diferentes inquéritos em curso no STF. Eles alegam com frequência que há uma ditadura do Judiciário e que estão sob censura.

Nesses inquéritos já ocorreram prisões preventivas, como do blogueiro Oswaldo Eustáquio, do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e, mais recentemente, de Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB.

Entre possíveis delitos apontados há desde crimes contra a honra, de incitação e de ameaça até tipos penais previstos na Lei de Segurança Nacional —texto da ditadura que foi revogado neste mês pelo Congresso.

Há críticas às decisões do STF? Uma das investigações mais notórias, o inquérito das fake news, é criticado, em primeiro lugar, por ter sido aberto por iniciativa do próprio tribunal.

É importante fazer a ressalva, contudo, de que parte das decisões recentes decorreram de solicitações da PGR (Procuradoria-Geral da República), como no caso da busca e apreensão contra Sérgio Reis, ou por pedido da Polícia Federal, como no caso da prisão de Jefferson. Nestes casos, o STF apenas deu autorização.

Outra crítica é a de que, muitas vezes, não houve fundamentação adequada para medidas mais graves como a prisão preventiva ou mesmo de busca e apreensão.

E uma terceira dimensão trata de avaliar se haveria ou não crime nas falas e discursos que têm sido alvo dessas investigações.

A professora de direito constitucional da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) Joana Machado diz que no STF, historicamente, havia uma linha de decisões no sentido de afirmar o direito à liberdade de expressão, mas que houve um recuo diante dos ataques às instituições.

“O Supremo tem se valido de leis que restringem a liberdade de expressão como resposta à correção de discursos que são anticonstitucionais. Acaba sendo perigoso pelo risco de você ter uma contradição performática”, diz ela.

Qual a importância de limitar discursos de ódio, ameaças e incitações? Para Denise Dora, diretora executiva da ONG Artigo 19 e advogada, é preciso considerar que as recentes decisões do ministro Alexandre de Moraes têm ocorrido diante da necessidade de regular o aumento da violência política para que não haja uma escalada a níveis incontroláveis.

“O que a gente viu dos grandes massacres genocidas dos últimos 50 anos não aconteceram do dia para a noite”, diz. “[Na guerra da Bósnia] Pessoas que eram vizinhas, que trabalhavam juntas, se tornaram arqui-inimigas e algozes, numa escalada de discriminação étnica e religiosa que não foi regulada, que não foi controlada no início.”

Quando uma fala pode ser considerada ameaça ou incitação? Anamaria Prates Barroso, advogada criminal e doutoranda em direito constitucional, destaca que a liberdade de expressão tem limites, mas pondera que muitas das falas que têm sido incluídas nos inquéritos não configuram ameaça e incitação ou mesmo crime. “Para que você pratique o crime tanto de ameaça ou de incitação, isso tem que ser algo sério, consistente. As bravatas, por si só, não podem caracterizar o crime de incitação ou ameaça.”

Leonardo Rosa argumenta que é preciso traçar distinções a depender do emissor da mensagem e defende que é preciso analisar o papel desempenhado por autoridades. “A gente não tem que tolerar que um membro das Forças Armadas ou das PMs [também] possa falar uma determinada coisa só porque um cidadão comum fala.”

Diego Nunes adiciona que forças de segurança e militares da ativa têm o dever de hierarquia, disciplina e de se abster de declarações de cunho político. “A desobediência a isso pode acarretar no crime de motim, previsto no Código Penal Militar e no ainda vigente artigo 17 da Lei de Segurança Nacional.”

Quais são os tipos penais da Lei de Segurança Nacional que têm sido utilizados? Eles estariam configurados apenas por meio do discurso ou é preciso outros elementos? ​​Neste mês, a LSN foi revogada pelo Congresso e, em seu lugar, foram aprovados os crimes contra o Estado democrático de Direito. O novo texto, porém, ainda está pendente de sanção presidencial.

No meio jurídico, a revogação da lei era defendida devido ao seu caráter autoritário. Por outro lado, havia o entendimento de que, sem ela, faltaria no ordenamento jurídico leis de proteção da democracia.

Professor associado do Insper, Ivar Hartmann afirma que os artigos 22 e 23, referentes ao discurso, são inconstitucionais por serem muito amplos e servirem para enquadrar qualquer conduta, dos discursos de Bolsonaro à abertura do inquérito das fake news. Já Nunes considera que os dispositivos serviam para criminalizar falas com potencial de ação.

Em relação ao artigo 17 da lei, que trata da tentativa de mudar o regime vigente por meio de violência ou grave ameaça, usada na justificativa da prisão de Jefferson, ambos consideram que apenas a fala dele não seria suficiente para que o crime seja configurado.

Nunes diz que a menção ocorre porque faz parte da estratégia jurídica elencar o máximo de condutas para um juízo preliminar, ainda que se saiba que não haverá condenação por elas. O professor também afirma que, no caso do dirigente, a investigação é sigilosa e podem haver outros elementos que configurem o delito e que não foram divulgados.

A partir de que momento falar mal de um ministro do STF, congressista ou presidente constitui ataque à própria instituição? Para Nunes, isso ocorre quando o ataque visa a função exercida pela autoridade. “De acordo com o nosso direito constitucional, um parlamentar, um juiz, um presidente da República, ele é mais do que a sua pessoa por si só, mas parte do poder Legislativo, Executivo e Judiciário.”

O professor considera que há limites para que as instituições sejam criticadas e que os ataques feitos de forma constante pelo presidente criam uma falsa percepção de que tudo é aceitável e que o STF está fazendo uma caça às bruxas, quando, no mais das vezes, está apenas aplicando o direito.

Outros especialistas discordam dessa leitura sobre a honra institucional, algo que para Hartmann não existe. Ele afirma que a instituição não pode proibir alguém de influenciar o público sobre sua imagem, seja de forma positiva ou negativa. Além disso, ao criticar um ministro, o que existe, na visão dele, é uma leitura de que uma determinada postura não condiz com a atuação que se espera daquele Poder.

“É simplesmente impossível eu prejudicar a imagem da instituição ao fazer um ataque a um membro da instituição. Só quem faz uso desse argumento são os próprios membros da instituição, seja do Judiciário, do Executivo, ou do Legislativo, que são criticados. Salvo exceções, ele é bastante típico de atitudes autoritárias”, diz Hartmann.

Na mesma linha, Joana Machado também critica a retórica da honra institucional.

“Se a gente não amadurece um pouco esse discurso, cria-se uma blindagem às instituições que não opera a favor e da sobrevida de uma instituição democrática, que precisa se fortalecer com críticas para o seu bom funcionamento”, afirma.

No caso dos crimes contra honra, a advogada Anamaria Prates argumenta que é preciso também fazer algumas diferenciações. “Se eu te chamar de ladra, eu não estou te imputando um crime. Para que eu te impute um crime, eu tenho que dizer a fulana furtou isso de mim.”

O professor de direito constitucional da PUC-Rio Fábio Carvalho Leite defende que a proteção à honra de autoridades públicas deve ser muito menor que a do restante da população. Leite considera que, apesar de constar em muitas decisões judiciais que se está considerando tal aspecto, abrem-se exceções sem parâmetros claros. “Sempre tem um ‘mas’ que vai justificar uma restrição à liberdade de expressão.”

Leite avalia que é preciso traçar um filtro mais seletivo do que estaria no campo penal em relação ao que se tem hoje. “Amanhã sou eu que posso estar fazendo um discurso ofensivo em relação a algum ministro, em relação a algum magistrado, e vou ter minha liberdade de expressão restrita por conta de uma jurisprudência ou de um precedente que eu inadvertidamente legitimei.”

Como evitar que o Brasil vivencie cenas como as da invasão do Capitólio, nos Estados Unidos? Especialistas apontam caminhos diferentes para lidar com manifestações antidemocráticas no país. Nunes diz que é possível agir por meio de medidas cautelares que proíbam a presença de determinadas pessoas em determinados lugares, a exemplo do que foi feito com Sérgio Reis.

“É uma medida preventiva, que tem algum poder dissuasório sobre o sujeito e também em relação à coletividade”, diz.

Já Hartmann defende a moderação das redes sociais, cobrando a responsabilização das empresas ao difundirem para usuários conteúdos que contenham discurso de ódio, além de um investimento na segurança física das instituições, fatores que considera decisivos para o que aconteceu no Capitólio.

“Tentar corrigir ou tentar censurar as falas do presidente da República, tanto no caso dos EUA como no Brasil, ignora o que foi decisivo”, diz. “Parece que hoje estamos vendo medidas efetivas naquele elemento que importa menos e poucas medidas efetivas nos elementos que importam mais.”

Joana também defende o aprimoramento do constitucionalismo digital, com a aplicação do direito para corrigir assimetrias existentes nas redes sociais, o que precisa ser feito com cautela para evitar decisões judiciais abusivas.

Folha de S. Paulo

 

 

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