Reforma eleitoral ameaça fiscalização dos partidos

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Foto: Dida Sampaio/Estadão

Com 372 páginas e 902 artigos, o projeto de lei complementar que tramita na Câmara para criar um Código de Processo Eleitoral abre brechas para uma espécie de “anistia” aos partidos políticos que gastam recursos públicos de forma indevida. Enquanto todas as atenções estavam voltadas para o voto impresso e o modelo das eleições para o Legislativo em 2022, o projeto relatado pela deputada Margarete Coelho (Progressistas-PI), correligionária do presidente da Casa, Arthur Lira (AL), passou pelas comissões e está pronto para ser votado no plenário da Câmara.

Segundo técnicos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ex-juízes e especialistas, a redução de 5 para 2 anos de prazo para análise das contas vai sobrecarregar ainda mais um sistema precário de fiscalização e empurrar boa parte delas para a prescrição.

Dois relatórios apresentados por observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA) que acompanharam as eleições de 2018 e 2020 no Brasil, obtidos pelo Estadão, disseram que é preciso estruturar melhor as áreas de fiscalização dos tribunais regionais eleitorais e do próprio TSE. Hoje, apenas 22 técnicos fiscalizam os processos e subsidiam o julgamento das contas em plenário no TSE. É por esse grupo que passam os recibos dos gastos dos fundos partidário e eleitoral, como passagens áreas, fretamento de aeronaves, contas de restaurante, hotel, aluguel de imóveis e outras rubricas.

Em 2021, o Orçamento prevê R$ 979,4 milhões para o Fundo Partidário. Para 2022, a estimativa é de que seja reajustado para R$ 1,061 bilhão. Já o Fundo Eleitoral, se não for vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, deve ser de R$ 5,7 bilhões em 2022.

Para se ter uma ideia do tamanho do desafio, o TSE está começando a julgar agora as despesas correntes dos partidos em 2016.

Em agosto de 2015, a falta de estrutura já era uma preocupação do então presidente da Corte, Dias Toffoli, que enviou ao Congresso o Projeto de Lei 2816/15, que criava 273 cargos efetivos e outros 410 em funções comissionadas nos quadros dos tribunais regionais eleitorais para reforçar a fiscalização. O sucessor, Gilmar Mendes, no entanto, pediu, em 2016, a retirada de tramitação alegando que o PL criava uma despesa anual para a União de R$ 52 milhões e o momento era de reduzir o custo da máquina.

Em 2019, a ministra Rosa Weber leu os relatórios da OEA e redirecionou 10 vagas de analista de outro concurso para a Assessoria de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa), o que deu um “alívio” aos técnicos.

“A prestação de contas nos moldes atuais beira o ficcional. Não há estrutura e funcionários suficientes para isso, embora os que estão lá sejam qualificados. É preciso embarcar tecnologia e ampliar o quadro de funcionários. O sistema é anacrônico”, disse o advogado constitucionalista André Lemos Jorge, ex-juiz do TRE-SP. Ele avalia que, diante da atual estrutura dos TREs, o tempo vai ficar muito apertado se reduzido para dois anos: “A tendência é que muitos processos sejam prescritos”.

Em março, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, criou grupo de trabalho para apresentar um modelo mais moderno de fiscalização das contas. Em junho, o colegiado concluiu um relatório que propôs a criação de um software com três informações a partir do extrato bancário: os gastos declarados pelo partido na prestação de contas manual, o documento comprobatório e a movimentação financeira do extrato.

Hoje, essas as informações são apresentadas, mas sem nenhuma vinculação. Os técnicos gastam muito tempo vinculando os lançamentos no meio dos PDFs. Em caráter reservado, técnicos do TSE calculam, porém, que o processo de contratação de uma empresa e implantação do sistema pode levar entre 4 e 5 anos.

“Os partidos resistem a prestar contas de uma forma transparente, moderna e padronizada. Eles têm má vontade com a prestação de contas e vêm rejeitando formulários padronizados e informações digitalizadas. Os partidos têm uma certa aversão à transparência, e a bomba explode no colo do TSE”, afirmou Gil Castello Branco, fundador e diretor executivo da ONG Contas Abertas.

Outro ponto polêmico levantado pelos especialistas é a migração do Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA), uma ferramenta criada pelo Tribunal, em 2009, para a estrutura contábil da Receita Federal, como prevê o projeto de Margarete. Na semana passada, os grupos envolvidos na campanha “Freio na Reforma”, que tem o apoio de mais de 30 organizações, enviaramuma nota a Barroso e Luís Felipe Salomão, corregedor-geral do TSE, manifestando preocupação com a transição.

Segundo o advogado Marcelo Issa, diretor da ONG Transparência Partidária, o sistema da Receita não foi desenvolvido para ser uma ferramenta de auditoria: “O acesso é restrito e os extratos ficam desorganizados”.

Pelo SPCA, quando presta contas o partido é obrigado a informar um conjunto de dados, como, por exemplo, a passagem aérea, o objetivo da viagem e até o código de reserva. Já o Sistema Público de Estruturação Digital, que é usado pela Receita Federal, só descreve o que aconteceu, como um livro diário. “Não se pode dizer que a Receita Federal é ineficiente. Essa interlocução com a Receita vai promover uma agilidade enorme. É a mesma coisa do imposto de renda. Se tiver inconsistência cai na malha fina”, disse Margarete Coelho.

Técnicos consideram, entretanto, que a ferramenta da Receita não tem o nível de detalhamento adotado pela Justiça Eleitoral para comprovação dos gastos com o Fundo Partidário. Além disso, a escrituração contábil digital (ECD) da Receita é informação protegida por sigilo fiscal, cuja quebra sem decisão judicial submete o analista das contas a processo administrativo.

Estadão  

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