Entenda o recuo tático de Bolsonaro
Foto: Paulo Jacob/Agência O Globo/Reprodução
O que levou Jair Bolsonaro a escrever a carta em que se compromete a seguir as regras do jogo democrático, deixando alguns de seus incendiários — inclusive a facção burra que se disfarça de imprensa — enlouquecidos? Uma nota: os verdadeiramente espertalhões, entre esses, sugerem que se trata apenas de um recuo tático e que o “Mito” guarda uma carta na manga para virar a mesa. Em um aspecto, ao menos, esse segundo grupo de canalhas tem razão: eu também não acredito na conversão de Bolsonaro. Afinal, em dois dias, ogro não vira príncipe. Só no filme do Shrek. Na live Al Qaeda/Zorra Total de ontem, horas depois da divulgação da carta, já se entregou a toda sorte de pusilanimidades.
Mas voltemos à questão que abre este artigo. O que moveu a mão de Bolsonaro a escrever aquela carta em que mete vírgula entre sujeito e verbo, atropela as concordâncias verbal e nominal, ignora regências, numa catástrofe também gramatical? Bem, aí é preciso recuar algumas horas no tempo.
Acreditem ou não, Bolsonaro realmente apostou que ele conseguiria virar o jogo — vale dizer: levar o país à convulsão civil — ainda no dia 7. Não sei quantos de vocês já subiram num palanque ou caminhão de som com milhares de pessoas nas ruas ou nas praças. Mesmo sem estar imbuído de espírito golpista, tem-se a impressão de que ali está o mundo. Bolsonaro costuma confundir a pantomima que estimula com a história universal.
Já nas primeiras horas de concentração em Brasília — e se percebia a mesma coisa em São Paulo, Rio e no resto do Brasil —, constatou-se que as Polícias Militares estavam se comportando de acordo com as regras do jogo. Na capital paulista, que recebeu o maior público, com uma grande manifestação também das esquerdas, não se registrou nenhum incidente. E essa foi a primeira grande decepção do dia para o ogro. Ele havia se preparado mesmo para um clima de insurreição e guerra civil, com a eventual intervenção — e pensem quão difícil isso seria em tal cenário — das Forças Armadas. E isso não aconteceu.
Em Brasília, a tensão já era grande na segunda à noite porque se deslocaram para lá os grupos mais radicalizados, mas a Segurança Pública retomou o controle na terça. O malucões queriam mesmo invadir o Supremo. Em São Paulo, o que se viu foi, sim, uma concentração grande de tias e de tios do zap sem muita disposição para fazer a revolução. Pediam, isto é fato, que os milicos dessem o golpe por eles. Depois voltariam para casa para tomar um breja ou bater um bolo, certos de que, assim, combatiam o comunismo.
Observei nesta coluna que o discurso de São Paulo, embora tivesse retomado a defunta questão do voto impresso, já havia sido menos afrontoso do que o de Brasília. Bolsonaro sabia àquela altura que a sua “guerra civil” tinha ido para o vinagre. Nas demais capitais do país, não havia nas ruas mais do que meia-dúzia de gatos-pingados. Os “mortadelas” dos R$ 100 e condução de graça haviam se dirigido mesmo a Brasília e São Paulo.
Na fala de São Paulo, reitero, a afronta ao Poder Judiciário foi menor, embora o presidente tenha citado explicitamente o nome de Alexandre de Moraes. E, no palanque, ele testou uma outra tese: disse que não acataria mais decisões judiciais oriundas de Moraes, incitando a que outros fizessem a mesma coisa. E foi nesse ponto que o ataque insano pôs em alerta não apenas os 10 ministros do Supremo. Os cerca de 22 mil juízes do país, entre estaduais e federais, perceberam: se é assim, então se tem o chefe da nação a declarar que as pessoas só devem obedecer as leis com as quais concordam e as decisões que considerarem justas.
Mas esperem! Falta uma informação importante: Bolsonaro havia feito, àquela altura, como posso chamar?, encomendas à Advocacia Geral da União, ao Ministério da Justiça e à Polícia Federal: respeitar apenas as decisões que o governo considerasse justas.
Como resposta, ouviu que a prisão em flagrante de um presidente da República que deixe de cumprir uma decisão judicial acaba sendo, na prática, impossível, mas não a das outra autoridades — que, convenham, na prática, seriam as responsáveis pelas agressões à ordem legal que Bolsonaro ambicionava. A solidão o contemplava.
Na quarta, Luiz Fux fez um pronunciamento em nome do Supremo que a muitos surpreendeu pela contundência. São infundadas as críticas dos que dizem que havia ali apenas retórica. Não! Foi ao limite do que pode o tribunal fazer. Reiterou a autonomia da Casa e deixou claro que repudiava as intimidações.
Parte das tias e dos tios já estavam voltando para casa sem o golpe. E restaram extremistas com caminhões em Brasília e em pontos de obstrução em rodovias de vários estados, com o risco, sim, de o movimento convocado pelo próprio presidente evoluir para algo expressivo, a exemplo do desastre que atingiu o governo Temer. Para lembrar: aquele troço, que contou com o apoio d candidato Bolsonaro e foi instrumentalizado pela sua campanha, custou quase um ponto percentual do PIB.
Atenção! Não existe greve de caminhoneiros que caia nas costas do Supremo, das oposições ou de um outro qualquer. O custo é sempre do governo. Bolsonaro viu-se, então, sem as PMs rebeladas, sem o golpe e sem a disposição de órgãos oficiais de mandar o Judiciário às favas. O arruaceiro estava em seu labirinto. Gravou, então, o áudio abúlico em que recomendava o fim do movimento e mobilizou Tarcísio de Freitas para asseverar que a voz era mesmo sua. Seus extremistas passaram a chamá-lo de traidor.
E é nesse ponto que o ex-presidente Michel Temer entra na conversa. Abúlico, deprimido, cercado de puxa-sacos ou de interlocutores sem trânsito político, falou com o ex-presidente Michel Temer, pediu sugestões, indagou sobre a possibilidade de uma conversa com Alexandre de Moraes. Este, consultado, por óbvio, não se negou a falar. Nenhuma reunião foi marcada ou desmarcada. Isso simplesmente não aconteceu.
O ex-presidente sugeriu que um modo de distensionar as relações entre os Poderes seria o atual mandatário redigir uma carta em que evidenciasse o seu compromisso com a Constituição e com as leis.
Temer, de fato, elencou alguns pontos, mas a redação é de Bolsonaro — o que explica a pletora de erros gramaticais —, a evidenciar que falta ao presidente uma assessoria de comunicação que seja plenamente alfabetizada. Entendo que o rigor com a gramática esteja entre as últimas preocupações de uma turma que respira conspiracionismo 24 horas por dia e que só se ocupa de golpear a Constituição. E veio à luz o texto que se conhece.
Então está tudo combinado. Fez-se o ARREGLO. E o ARREGO indica que não haverá golpe — e já se sabia que não. Isso não quer dizer que Bolsonaro esteja disposto a cessar o fornecimento de ração de indignidade a seu público.
Na live desta quinta, depois da ira santa que a carta provocou nas suas hostes, voltou a ser o Bolsonaro de sempre. Pôs, mais uma vez, em dúvida o voto eletrônico e atingiu aqueles que considera adversários com um discurso especialmente homofóbico. Até os vitupérios contra o dito “kit gay” foram ressuscitados.
Ah, sim: a reação da Bolsa e do dólar à sua baba golpista de terça também o deixou alarmado. Percebeu que qualquer aventura mais truculenta, e os mercados quebram as suas pernas antes que possa disparar seus perdigotos. Não havendo fator externo adverso, as coisas se acalmam nesta quinta: a Bolsa sobe, e o dólar cai.
Que fique claro! O golpe de Bolsonaro foi para o ralo, não a sua disposição golpista. A carta, igualmente, não o livra dos crimes comuns e de responsabilidade que já cometeu, pelos quais precisa responder.
As consequências adversas de sua loucura permanecem. Não há solução judicial possível para o calote que ele pretende dar nos precatórios, o que lhe daria folga fiscal-eleitoral. Terá de negociar uma PEC no Congresso.
E encerro com uma nota para outras tertúlias. O silêncio de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, interrompido apenas por intervenções acacianas, o transformou num pato manco. Tem muito poder sobre o tal Orçamento secreto. Mas já ninguém mais dá bola para o que faz ou deixa de fazer.
No Legislativo, o Senado passou a ser visto como a Casa da resistência democrática. Lira sai dessa crise como personagem de um antigo quadro do bolsonarista Silvio Santos: “Topa Tudo Por Dinheiro”.
Nunca ninguém o viu como referência institucional, é claro! Mas sempre há a força do cargo. Ele demonstrou que, em matéria de golpe, é dono de silêncios muito eloquentes. Ninguém com alguma responsabilidade o leva mais a sério. A não ser para jogar o jogo no qual é especialista.
E não é a democracia.
Assinatura
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