EUA participaram de caçada a Lamarca durante a ditadura

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Foto: Arte/UOL

Documentos do governo dos Estados Unidos mostram que o país acompanhou de perto a operação da ditadura militar brasileira que resultou no assassinato de Carlos Lamarca, capitão do Exército e comandante guerrilheiro. A morte ocorrida no interior da Bahia completa 50 anos na data de hoje.

Carioca criado no Morro de São Carlos, no centro do Rio, Lamarca foi um dos protagonistas da luta armada. Formou-se pela prestigiosa Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ) e desertou do Exército aos 32 anos, no ano de 1969. Seu grupo levou 63 fuzis e metralhadoras de um quartel em Osasco, na Grande São Paulo.

Líder da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), realizou assaltos bancos e sequestros como o do embaixador suíço Giovanni Bucher, em 1970, que resultou na libertação de 70 presos políticos.

Em março de 1971, seis meses antes de morrer, Lamarca deixou a VPR para ingressar no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). No ano anterior, havia escapado de um cerco gigantesco do Exército no Vale do Ribeira, interior de São Paulo.

“É inegável que, após o assassinato de Carlos Marighella [em 4 de novembro de 1969, na cidade de São Paulo], Lamarca se tornou o principal alvo da ditadura”, afirma o jornalista e ex-deputado Emiliano José, coautor do livro “Lamarca – O Capitão da Guerrilha”, escrito em parceria com Oldack Miranda.

A reportagem analisou 18 relatórios, informes, telegramas e comunicados ao Departamento de Estado dos EUA enviados por seus diplomatas entre fevereiro de 1969 até setembro de 1971. Os documentos trazem informações sobre Lamarca e integrantes de seu grupo, a exemplo do então sargento Darcy Rodrigues, além de outras lideranças da VPR e do MR-8.

O UOL teve acesso a arquivos dos chamados “disclosed documents” do Departamento de Estado dos EUA, sobre o período da ditadura militar brasileira.

Telegrama enviado pelo embaixador dos Estados Unidos no Brasil, William Rountree, em 26 de agosto de 1971, mostra como caçada a Carlos Lamarca era acompanhada de perto pelo governo dos EUA.

“O DOI-Codi [Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Operações e Defesa Interna, órgão repressor da ditadura] organizou operação para capturar Lamarca, e creem que ele agora se encontra cercado, com apenas 40 por cento de chances de escapar ao cerco”, escreveu Rountree ao Departamento de Estado em Washington.

Quando o embaixador dos Estados Unidos enviou seu telegrama, Lamarca estava no sertão da Bahia, onde tentava, sem sucesso, montar uma base para sua guerrilha.

A operação do Exército para capturá-lo e matá-lo foi dispendiosa. Relatório reservado do Ministério do Exército na época da ditadura militar revela que foram gastos Cr$ 582.218,58 – ou R$ 833.152,67 em valores atuais – na ação especial montada pelas forças de repressão para eliminar Carlos Lamarca em 1971. Trata-se da Operação Pajussara.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Defesa não se pronunciou.

A Operação Pajussara contou com 215 militares e policiais da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo, entre eles o delegado Sérgio Paranhos Fleury, e teve como comandante o major Nilton de Albuquerque Cerqueira, chefe da 2ª Seção do Estado-Maior da 6ª Região Militar e comandante do DOI de Salvador.

A missão contou ainda, segundo o relatório militar, com o apoio de três grandes empresas que enviaram pessoal, veículos e aeronaves: Companhia de Mineração Boquira, Petrobras e TransMinas.

“O transporte foi realizado inicialmente com a ampla cooperação da Cia. Mineração Boquira que, além de ceder seu avião, apoiou integralmente, com viaturas, o deslocamento terrestre, permitindo, dessa forma, que se obtivesse êxito na infiltração das equipes na área, dificultando um possível trabalho dos informantes do bando terrorista”, escreveu o general de Brigada Argus Lima, comandante da 6ª Região Militar, em 19 de setembro de 1971.

A ofensiva executou o capitão Lamarca e José Campos Barreto – Zequinha Barreto – no povoado de Pintada, em Ipupiara, interior da Bahia; Iara Iavelberg – companheira de Lamarca – em Salvador; Luiz Antônio Santa Bárbara e Otoniel Barreto, em Brotas de Macaúbas (BA).

A localização do capitão no interior baiano teve colaboração entre os serviços de informação da Aeronáutica (CISA) e do Exército (CIE). Entre a identificação do ponto onde Lamarca estava, fazer o cerco e executá-lo transcorreram 21 dias, de 28 de agosto de 1971 até a tarde do dia 17 de setembro. Foram utilizados até mesmo helicópteros para a ação.

Quem avistou Lamarca e Zequinha no meio da caatinga foi o motorista de um dos carros que transportava os militares, identificado como Fumanchu, segundo o relatório reservado do Exército. “Major, tem dois homens deitados debaixo da árvore”, teria afirmado o motorista.

“Toda a equipe, a essa altura, já estava em linha. O elemento que deu o alarme começou a correr, iniciando-se então o tiroteio. O segundo levantou-se, tentando também correr…. Esse foi abatido 15 metros à frente, caindo ao solo, enquanto o que dera o alarme, apesar de ferido, prosseguiu na fuga”, relatou o general Argus Lima.

Desde a década de 1990, o Estado brasileiro reconhece que Lamarca foi assassinado pela ditadura militar. Em 18 de setembro de 1996, o Diário Oficial da União publicou a decisão da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, ligados à época ao Ministério da Justiça. Por cinco votos a dois, a União reconheceu que era responsável pela morte de Lamarca.

No início de 1969, o general-presidente Artur da Costa e Silva desligou Lamarca do Exército com base no Ato Institucional nº 5, o AI-5, por “ter cometido atos de natureza desonrosa à dignidade militar” e ser considerado desertor.

A pecha de Lamarca ser traidor do Exército foi construída pela ditadura ao longo dos anos, conforme revela informe de inteligência da Embaixada dos EUA no Brasil de 12 de junho de 1969. Os estadunidenses dizem que ele desertou do Exército, roubou armas e era “o líder da guerrilha terrorista em São Paulo”.

“Lamarca revelou-se um excelente ator. Ele não deu nenhuma indicação de envolvimento em qualquer coisa suspeita e permaneceu alheio para assédio agressivo de agitadores e de estudantes. Além disso, na esteira de numerosos assaltos a bancos em São Paulo, Lamarca conduziu treinamento de tiro ao alvo para funcionárias e caixas de bancos”, descreve o informe dos EUA.

Adidos dos EUA no Brasil tentavam acompanhar cada passo de Lamarca. “A senhora Lamarca e a esposa do sargento Darcy e seus respectivos filhos supostamente partiram do Brasil em 22 ou 23 de janeiro [de 1969] para Havana via Roma” aponta outro relatório secreto do Departamento de Estado.

A senhora Lamarca a que se refere o texto é Maria Pavan, e a esposa do sargento Darcy é Rosalina.

O próprio Darcy, hoje capitão da reserva, conta:

“Elas embarcaram no avião no dia 24 de janeiro, mais ou menos às 22 horas. Eu e Lamarca ainda fomos nos despedir delas no aeroporto de Congonhas, em São Paulo”, afirma Darcy em entrevista ao UOL. Elas viajaram para Roma e depois seguiram para Cuba.

Braço direito de Lamarca, Darcy Rodrigues explica que o golpe militar de 31 de março de 1964 não foi aceito por muitos integrantes das Forças Armadas que haviam se comprometido, sob juramento à bandeira, defender a ordem e a lei.

“Eles traíram o compromisso assumido. Encontrei recentemente um militar da academia e disse, mais uma vez, que eles acusaram a gente (Darcy e Lamarca) de um crime que eles mesmo cometeram. Nós não, nós defendemos o presidente da República, que era o João Goulart. Tivemos a decência de sair do Exército para combater o Exército”, dise.

Rodrigues afirma ainda que Lamarca “foi uma pessoa extraordinária sob todos os pontos de vista e um militar fiel”, afirmou. “Era um grande comandante”.

A embaixada dos EUA, em seus relatórios, aponta problemas relacionados ao comando militar para justificar as ações do capitão Lamarca:

“O Ministro do Exército (Aurélio) Lyra Tavares responsabiliza (o coronel Antonio) Lepiane pela falta de vigor em ação de acompanhamento depois de termos tido conhecimento prévio de que Lamarca poderia estar agindo de maneira errada (dentro do Exército)”, segundo documento secreto dos EUA.

Lepiane era chefe do Estado Maior da 2ª Divisão de Infantaria do Exército em São Paulo e assumiu o comando da Oban (Operação Bandeirante), órgão que antecedeu o DOI-CODI.

No dia da ação que praticamente esvaziou o paiol de armas do quartel quartel do 4º Regimento de Infantaria de Quitauna, em Osasco, a chefia da guarda no quartel estava a cargo do então sargento Darcy Rodrigues, segundo os jornalistas Emiliano José e Oldack Miranda, autores de uma biografia de Lamarca.

Junto a ele estavam o cabo José Mariane e o soldado Carlos Roberto Zanirato, que se tornaram um dos “terroristas” mais procurados no Brasil à época, com seus rostos estampados em cartazes com a palavra “Procura-se” espalhados pelo país.

Um dos 70 presos políticos libertados após o sequestro do embaixador suíço, Roque Aparecido da Silva, da VPR, foi preso em 2 de fevereiro de 1969, semanas depois da saída de Lamarca do quartel em Osasco.

“Fiquei dois anos preso e acabei trocado pelo embaixador suíço. Saí direto para o Chile”, diz hoje Roque. Tempos depois, no Chile, o ex-integrante da VPR ficou sabendo do assassinato de Lamarca pela imprensa chilena.

“Matéria noticiou como morte de líder terrorista no Brasil”, conta Roque.

Por sua vez, Darcy Rodrigues recebeu a notícia da morte de Lamarca, em Cuba.

“Estava voltando da escola com meus filhos. Dona Ester, uma mulher cubana me chamou para escutar noticiário no rádio da casa dela. Era a Rádio Relógio, que repetia as notícias a cada hora”, afirma Rodrigues.

“Foi um baque muito grande.”

Uol

 

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