Revogação da LSN deve esvaziar investigações contra bolsonaristas

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Foto: Daniel Silveira / Agência O Globo

A revogação da Lei da Segurança Nacional (LSN), seguida de nova legislação que cria novos crimes contra o Estado democrático de direito, deve esvaziar as investigações contra aliados do presidente Jair Bolsonaro acusados de ataques ao Judiciário e ao Congresso. Isso porque a nova lei autoriza expressamente a “manifestação crítica” aos Poderes constituídos, desde que não haja a incitação de atos violentos ou ameaças, na avaliação de investigadores e advogados ouvidos pela reportagem.

Por outro lado, as mudanças na lei também inviabilizam os inquéritos abertos contra opositores do presidente, que vinham sendo investigados pela Polícia Federal por causa da realização de críticas públicas a Bolsonaro. Na gestão do atual diretor-geral da PF Paulo Maiurino, a própria instituição já havia acordado com o ministro da Justiça Anderson Torres não mais abrir investigações contra opositores do presidente com base na Lei da Segurança Nacional.

Na avaliação de investigadores da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Polícia Federal, as mudanças no ordenamento jurídico devem gerar uma reavaliação dos inquéritos em curso. Há diversos casos em tramitação que se baseiam em crimes previstos na antiga LSN, como o inquérito sobre milícias digitais, o inquérito das fake news e a investigação sobre a organização de atos violentos para o último 7 de Setembro. Esses casos, porém, também investigam outros crimes previstos no Código Penal, que não serão afetados pela mudança na LSN. A mesma avaliação é compartilhada por uma ala de ministros do Supremo.

Um dos empecilhos, na avaliação de investigadores, é que essa legislação não pune atos preparatórios à realização de crimes contra a democracia. Isso significa que a articulação de grupos radicais para atentar contra as instituições só iria gerar punições caso os atentados fossem de fato colocados em prática.

Justamente por causa desse período de transição, o inquérito sobre os atos do 7 de Setembro, que foi instaurado no mês passado, não chegou a se aprofundar sobre os possíveis crimes nos quais poderiam ser enquadrados os organizadores das manifestações antidemocráticas. Isso ainda deverá ser avaliado à medida que a investigação avance.

O principal crime contra o estado democrático previsto na nova lei é: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena prevista de reclusão de quatro a oito anos.

Há uma diferença dessa configuração com a lei contra o terrorismo, de março de 2016, que prevê explicitamente a punição para quem “realizar atos preparatórios”. No caso dos atos antidemocráticos, investigadores avaliam ser mais difícil punir atos preparatórios que não cheguem a resultar em atentados contra as instituições, pela ausência dessa previsão legal.

O artigo que retira a possibilidade de punir declarações públicas contra os Poderes diz o seguinte: “Não constitui crime (…) a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

Ainda não é possível saber de que forma essa norma será interpretada pelo Judiciário. A avaliação de investigadores e advogados criminalistas ouvidos pela reportagem é que a intenção da lei é garantir liberdade de expressão, desde que não haja incitação a atos violentos.

Outro crime existente na antiga lei e que saiu da norma legal era o de incitar animosidade entre as Forças Armadas e as instituições, que era uma estratégia adotada com frequência por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Com isso, não haveria punição a esses atos.

— A revogação da LSN por si só não provocará a abolitio criminis (abolição de crimes) de eventuais investigações existentes no Supremo Tribunal Federal, na medida em que as figuras especiais previstas na antiga LSN poderão ser desclassificadas para outros crimes previstos na legislação. Por exemplo, as ofensas proferidas por Sarah Winter e Daniel Silveira poderiam caracterizar crimes contra honra e não mais crimes contra a segurança nacional, caso na nova legislação sejam mantidos os vetos presidenciais. Todavia, o projeto recentemente aprovado, em que pese possuir alguma melhora, continua a pecar pela metodologia utilizada, criando tipos penais polissêmicos que admitem diversas interpretações, produzindo insegurança jurídica — afirma o advogado Filipe Coutinho da Silveira.

Conrado Almeida Gontijo, criminalista, doutor em Direito Penal pela USP, acredita que a revogação da Lei de Segurança Nacional foi um passo importante na consolidação da nossa democracia, porque desaparece do ordenamento jurídico brasileiro um conjunto de figuras delitivas criado na ditadura, para justamente cercear direitos e liberdades democráticas. Ele lembra que, nos últimos anos, com a ascensão de Jair Bolsonaro, a LSN passou novamente a ser usada com fins políticos, para constranger opositores do governo.

— De qualquer forma, a revogação da lei não abre espaço para abusos. Seguem existindo mecanismos criminais para impedir abusos, como temos visto nos casos em que são atacadas as instituições — afirmou Gontijo. — É importante dizer que a nova lei reforça a liberdade de expressão, a manifestação do pensamento e de crítica. Tudo isso é central para a realização da democracia. Entretanto, seguem proibidas (e sancionada criminalmente) as condutas que atentam contra as instituições: ofensas que extrapolam o limite da crítica, ameaças, iniciativas que visam a gerar caos social etc. Essas práticas, muitas delas objeto de apuração pelo STF no inquérito das fake news, seguem proibidas, porque contrárias à noção de democracia. A liberdade democrática não é ilimitada. Encontra limites nos postulados fundamentais da própria democracia.

Diversos artigos da lei que poderiam punir bolsonaristas foram vetados pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada. Um desses artigos, aprovado pelo Congresso Nacional, estabelecia pena de reclusão de um a cinco anos para a disseminação de notícias falsas “capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.

Bolsonaro se tornou investigado no inquérito das fake news após espalhar notícias falsas sobre as urnas eletrônicas e realizar ameaças a respeito da realização das eleições do próximo ano. O Congresso Nacional, porém, ainda pode derrubar esses vetos.

Além disso, denúncias já apresentadas contra aliados do presidente Jair Bolsonaro devem permanecer válidas porque se basearam em crimes previstos no Código Penal, além dos delitos da LSN. As ações foram movidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra os deputados federais Otoni de Paula (PSC-RJ), Daniel Silveira (PSL-RJ) e, mais recentemente, contra o ex-deputado e presidente nacional do PTB Roberto Jefferson.

As acusações incluem, por exemplo, os delitos de coação ao curso do processo (casos de Otoni de Paula e Daniel Silveira), assim como de incitação ao crime e homofobia (na denúncia de Roberto Jefferson). Eles também haviam sido acusados de crimes da antiga LSN. Com a revogação dessa lei, na avaliação de advogados criminalistas, a tendência é que as acusações de crimes com base na antiga LSN sejam extintas.

Na última semana, a defesa de Daniel Silveira chegou a protocolar um pedido para que a denúncia contra ele fosse extinta por causa da revogação da LSN. A defesa também alegou que a prisão preventiva dele deveria ser revogada, porque se baseou na antiga lei, já extinta.

— A aplicação da revogação da Lei de Segurança Nacional é imediata. Além disso, não mais existindo a tipicidade, não mais subsiste o crime, que, por ricochete, extingue outro elemento do crime: a punibilidade — argumentaram os advogados Paulo Cesar Rodrigues de Faria e Jean Cléber Garcia.

O Globo

 

 

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