Neoliberais dizem que furo do teto de gastos afundará economia

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Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

No mundo dos sonhos de qualquer político, o dinheiro para gastar é ilimitado, e quaisquer contas a acertar ficam para o mandato seguinte (de preferência para algum adversário). O que costuma separar essa concepção onírica — e equivocada— da realidade são as regras que forçam os governantes a agir com critério em relação ao dinheiro público e preveem punições em caso de infrações. Nos últimos anos, o Brasil avançou nessa seara. Criamos a Lei de Responsabilidade Fiscal, que obriga o governo a fazer planejamento orçamentário e a se prevenir contra gastos acima da sua capacidade de arrecadação, e a chamada regra de ouro, que proíbe dívidas para pagar despesas correntes, como salários, aposentadoria e contas de luz. Mais recentemente, logo depois da gestão temerária de Dilma Rousseff, foi aprovada também a terceira e mais importante das chamadas âncoras fiscais: o limite do teto de gastos. Por meio dela, os aumentos do Orçamento da União são limitados a um reajuste pela inflação registrada no ano anterior.

Pois justamente sob o governo de Jair Bolsonaro, autodefinido como liberal e teoricamente cioso da responsabilidade fiscal, o teto de gastos enfrenta agora seu maior risco em quatro anos de vigência. Na última semana, diversos membros do governo — até o antes defensor Paulo Guedes — discutiram abertamente formas de burlar o mecanismo e abrir espaço no Orçamento de 2022, ano de eleição presidencial, para novos gastos. Claramente eleitoreiro, o objetivo é vitaminar o programa de transferência de renda Bolsa Família, agora rebatizado com o nome de Auxílio Brasil, para 400 reais. Com a medida, os articuladores políticos do presidente pretendem eliminar de vez o vínculo do programa com a imagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje o principal rival de Bolsonaro nas urnas, e elevar a popularidade do atual ocupante do Palácio do Planalto.

Em um cenário de agravamento das condições de vida da população mais pobre, principalmente depois do desastre sanitário da Covid-19, programas de transferência de renda tornam-se necessários — especialmente em um país marcado pela desigualdade econômica e social como o Brasil. A questão não é adotar ou criar tais programas, mas, principalmente, como custeá-los. O caminho previsto pelas regras fiscais é claro: a criação de novas despesas exigem uma gestão mais eficiente de recursos, com uma priorização nos gastos. O problema é que, no decorrer de seu governo, o presidente Bolsonaro sistematicamente engavetou projetos que propunham cortes de custos, como a reforma administrativa, por receio de desagradar a aliados e corporações. “A solução seria um caminho do meio, desativando outros tipos de gastos públicos um tanto quanto desfocados em nome do novo auxílio mais abrangente. O problema é que o governo não quer cortar nada e sempre acaba caindo no conflito entre o social e o econômico”, diz o economista Marcelo Neri, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Na semana passada, esse conflito atingiu o paroxismo e se transformou em uma demonstração explícita de falta de coordenação de um governo sem rumo. Desde 2020, o Planalto flerta com o aumento do Bolsa Família. A distribuição dos 600 reais de auxílio emergencial durante a pandemia acabou aumentando a aprovação de Bolsonaro naquele difícil momento, um fator que transformou o presidente, antes um crítico desse tipo de programa, em seu fiel defensor. Ele passou então a cobrar a equipe econômica a fim de turbinar um bolsa para chamar de seu. Mas como as soluções propostas pela equipe econômica não foram bem recebidas, a ala política do governo, que vê nessa manobra a única chance de Bolsonaro ganhar no ano que vem, partiu para o ataque e articulou uma alternativa agressiva. Na quarta-feira 20, o governo anunciou o projeto de um novo benefício de 400 reais, valor a ser pago até o fim de 2022, o que significa um acréscimo de 111% no valor médio atual de 189 reais do Bolsa Família. Detalhe: para pagar o aumento, o governo admitiu que gastaria pelo menos 25 bilhões de reais fora do teto de gastos no próximo ano (o número pode ser bem maior do que esse).

Era o que o mercado mais temia: um ataque frontal à credibilidade econômica e à responsabilidade fiscal. O resultado foi uma disparada no dólar e nos juros futuros e queda na bolsa, com as empresas listadas na B3 perdendo 152 bilhões de reais em valor de mercado em um único dia. Inesperado pela ala amadora, o turbilhão provocado pelas reações à ruptura do teto chacoalhou o governo. Integrantes do Ministério da Economia, último bastião da responsabilidade fiscal do governo, ameaçaram se demitir, preocupados em participar de uma decisão que poderia constituir crime de responsabilidade. O evento de lançamento do Auxílio Brasil, que aconteceria na mesma tarde, acabou cancelado em cima da hora, sem maiores explicações. O dia seguinte foi marcado por desencontros de informação e mais confusão. Pela manhã, o presidente reiterou em um pronunciamento que o benefício teria o valor mínimo de 400 reais, com a ressalva de que não incorreria no rompimento do teto de gastos. À tarde, o ministro da Cidadania, João Roma, veio a público anunciar formalmente o Auxílio Brasil, que entraria em vigor em novembro e seguiria a “responsabilidade fiscal”. No entanto, não explicou de onde virão os recursos.

Horas depois, em um evento on-line, o ministro Paulo Guedes acrescentou novos elementos à tempestade — e rasgou sua própria biografia. Ao tentar explicar a proposta deixada em aberto pelo colega, admitiu que uma das saídas seria pedir uma licença (definida por ele de forma eufemística pelo anglicismo “waiver”) para gastar 30 bilhões de reais fora do teto, a título de “atenuar o impacto socioeconômico da pandemia”. A resposta à declaração veio na manhã de quinta-feira com a bolsa registrando antes mesmo da abertura do pregão à vista uma queda de 2% no Ibovespa futuro e o dólar batendo em 5,67 reais na abertura do mercado. “Essa é uma reação à forma como o benefício social está sendo implementado e não ao mérito da proposta, ou seja, do aumento em si. Está claro que é uma resposta ao rompimento do teto, que é a única âncora fiscal do país”, afirma o economista Sergio Goldenstein, ex-chefe do departamento de operações do mercado aberto do Banco Central. “O Auxílio Brasil deixou a percepção de que se abre uma porteira por onde a boiada vai passar.”

Mesmo antes do anúncio tumultuado, a proposta que sustentava a criação do Auxílio Brasil já não gozava da confiança do mercado — e isso antes das manobras no teto. A equipe de Guedes defendia um benefício menor, de 300 reais, e para bancar tal aumento, o ministro precisava de uma dupla anuência do Congresso. A primeira delas era a aprovação da PEC dos precatórios, que coloca um limite anual para o pagamento de dívidas judiciais da União. A segunda é a reforma do Imposto de Renda, que, entre outras mudanças, propõe a volta da tributação sobre dividendos e juros sobre capital próprio. Nesse caso, pelo menos, se criaria uma fonte de renda permanente para o programa. Apesar de aprovada na Câmara, a proposta está parada no Senado e não deve ser aprovada em prazo hábil para as necessidades urgentes do governo. Ainda mais agora que o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, anunciou a filiação ao PSD e sonha em ser adversário de Bolsonaro em 2022. “Você ajudaria um inimigo que está se atrapalhando todo sozinho?”, pergunta, pedindo anonimato, um cacique de um dos partidos da terceira via.

Organização e planejamento são palavras que parecem não constar do vocabulário do governo Bolsonaro. Certas decisões são tomadas na base do improviso, muitas vezes sem a avaliação das consequências, e com dados fantasiosos. O Orçamento de 2022, aliás, poderá trazer um rombo ainda maior do que esse do auxílio. De acordo com o economista Manoel Pires, coordenador do Observatório Fiscal do Ibre/FGV, a lei orçamentária para 2022, como foi entregue ao Congresso, já não incluía 66,5 bilhões de reais em gastos adicionais que poderiam vir, como no caso da inflação mais alta do que o esperado (veja o quadro). Se adicionar o impacto do auxílio de 400 reais, essa conta será maior, próximo de 100 bilhões a mais, o equivalente a quase todo o espaço orçamentário não obrigatório de que a União dispõe para o ano. “O governo subestimou valores, em especial os reajustes nas despesas obrigatórias que deverão ocorrer em decorrência da alta da inflação”, afirma Gil Castelo Branco, secretário-geral da associação Contas Abertas. Na quinta-feira 21, foi anunciada uma gambiarra associada à PEC dos Precatórios para diminuir esse impacto. A manobra, no entanto, pouco altera a essência do problema. No mesmo dia, dois importantes secretários de Guedes pediram demissão.

Divergências e rivalidades entre grupos com concepções e objetivos conflitantes são comuns em qualquer governo, principalmente no que diz respeito à destinação dos recursos públicos. Na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tornou-se notório o embate do grupo dos desenvolvimentistas, encabeçados por José Serra, e dos monetaristas, representados por Pedro Malan. No confronto pelo controle da política econômica, o presidente se posicionou em favor do último grupo, o que garantiu coesão e um bom desempenho a seu governo. Em seu pragmatismo de governante, FHC fez o básico: preferiu dar ouvidos a quem entendia de economia em assuntos econômicos e acatar conselhos de políticos em temas eleitorais e negociações com o Congresso. Mas ele nunca deixou os dois territórios serem invadidos pelo grupo oponente.

No caso do governo Bolsonaro, esse posicionamento simplesmente não existe. O discurso liberal de Paulo Guedes é continuamente afrontado pela ala política de ministros como Ciro Nogueira (Casa Civil), João Roma e Onyx Lorenzoni (Trabalho) — a turma do Centrão. No episódio envolvendo o Auxílio Brasil, o grupo defendeu abertamente junto ao presidente a ruptura do teto de gastos entre 11 e 15 de outubro, quando Guedes participava de uma reunião no Fundo Monetário Internacional (FMI), em Washington. O argumento era de que o modelo da equipe econômica teria pouco efeito, principalmente levando-se em conta o cenário eleitoral. Simultaneamente, circularam por Brasília rumores da saída do ministro (leia a coluna Radar, na pág. 28). Ao voltar da viagem, ele foi recebido por Bolsonaro e reforçou os alertas quanto ao teto de gastos. O presidente, no entanto, manteve-se irredutível — Guedes, por sua vez, consentiu e não pediu para sair. Ao contrário. Vai ficar com a esperança de mudar o jogo lá na frente.

Equivocada, a ruptura do teto de gastos pode lançar o país em uma espiral de problemas. Entre os economistas, o chamado populismo fiscal, em que medidas eleitoreiras se sobrepõem à responsabilidade orçamentária, é um dos principais motivos pelos quais a economia brasileira vem se arrastando há mais de vinte anos, sem crescimento sustentável e provocando desconfiança de investidores nacionais e estrangeiros. Uma violação de forma tão ostensiva do teto lançará o país de volta ao velho regime fiscal, marcado por taxas de juros e inflação mais altas e perspectiva de investimento menor, uma decorrência direta da incerteza econômica. “Se levarmos em conta os efeitos sobre a inflação, o dólar mais alto, a fraca recuperação da atividade e do nível de emprego, fica evidente que o cenário piorará bastante”, afirma Carlos Kawall, diretor da gestora ASA Investimentos e ex-secretário do Tesouro Nacional. E, mais uma vez, a triste maldição do país condenado à mediocridade pode voltar a valer para o Brasil.

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