Polarização política nas redes está emburrecendo a humanidade
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Objeto de análise desde os primórdios da civilização, a inteligência humana é um mistério tão intrigante quanto a origem do universo. Na cultura ocidental, sua primeira definição remonta à Ilíada, o poema do século VIII a.C. em que Homero narra a história do herói Aquiles e da Guerra de Troia e faz referência à psuche, origem do termo psique, no clássico grego uma força superior àquela que dá vida ao restante dos seres. As dúvidas sobre o que faz os indivíduos serem mais ou menos inteligentes permanecem, mas, ao longo de milênios, o conceito foi sendo destrinchado em estudos científicos sobre os mecanismos que movem o intelecto até se chegar a uma forma de medição padronizada — o teste de Q.I. (quociente de inteligência) — amplamente reconhecida e aceita.
Entra década, sai década, em boa parte do século XX os países mais avançados, principalmente, puderam bater no peito e anunciar com orgulho que o Q.I. médio de seus habitantes subia consistentemente — até a curva começar a cair e a inteligência engatar marcha a ré a partir dos anos 2000. Em sólidos levantamentos, descobriu-se algo constrangedor para a civilização: pela primeira vez, os filhos passaram a ter mentes menos afiadas do que a de seus pais. E como fugir da lembrança de movimentos da atualidade desprovidos de massa cinzenta, como os antivacina, os anti-instituições democráticas e os anticiência que compõem o lado escuro da polarização ideológica que varre o planeta?
O esforço de tentar entender e reverter esse quadro tem sido tema de uma série de estudos e publicações recentes capitaneados por pesos-pesados da área, intrigados com o fenômeno. No livro A Fábrica de Cretinos Digitais, que acaba de ser lançado no Brasil, o renomado neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, aponta as baterias de combate ao estado atual de estagnação intelectual para o que afirma ser sua maior causa: o excesso de tempo passado diante da tela dos mais variados aparelhos digitais. “A tela, em si, não representa um mal, mas o número de horas despendidas na sua frente é assustador”, ressaltou Desmurget a VEJA. “O uso de computadores e celulares por pré-adolescentes é três vezes maior para se divertir do que para fazer trabalhos escolares. No caso dos adolescentes, o número sobe para oito”.
No trecho em que se debruça sobre o desenvolvimento de crianças pequenas, o especialista adverte que internet e aplicativos de redes sociais em demasia afetam negativamente as interações, a linguagem e a concentração, os três pilares básicos do progresso cognitivo em qualquer idade, mas de excepcional importância nos cinco primeiros anos da existência. É justamente nesse período-chave que se observa o auge da plasticidade — nome dado à frenética formação de sinapses que nunca mais se repetirá e que resulta na evolução ultra-acelerada do potencial do cérebro. “Até o humor do meu filho piorou com o tempo excessivo na frente do celular”, reconhece a assistente administrativa Hanna Ueda, 27 anos, de São Paulo. Ela restringiu o uso e, junto com o marido, Giovanni, passou a sentar todo dia com Pedro, 4 anos, para ler um livro e assim motivar sua curiosidade. “No caso das crianças pequenas, celular é um entretenimento passivo, sem reflexão ou desafios. Não passa de uma diversão viciante”, alerta Claudio Serfaty, do Programa de Pós-Graduação em Neurociências na Universidade Federal Fluminense.
Colocada dessa maneira, parece que a tecnologia é um mal. Longe disso. O foguete do progresso tecnológico transportou a humanidade para um novo patamar de conhecimento, criatividade, bem-estar e longevidade, com nítidos e incontáveis benefícios em todas as áreas — inclusive no estudo da inteligência. O ruim é o exagero. Esse ramo da ciência, de aferição cognitiva, ganhou impulso no século XIX, quando o antropólogo inglês Francis Galton (1822-1911) esmiuçou a teoria da evolução formulada por seu primo, Charles Darwin (1809-1882). Galton concluiu que a inteligência é uma característica hereditária e desenvolveu, em 1884, o primeiro método de medida do intelecto humano — um conjunto rudimentar de testes físicos e psicológicos. Três décadas depois, foi a vez de o psicólogo alemão Wilhelm Stern elaborar o quociente de inteligência, só que em uma fórmula muito complexa. Coube a Lewis Terman, especialista em psicologia educacional da Universidade Stanford, simplificar o teste e popularizar a sigla Q.I. Foi Terman quem sedimentou o padrão médio de Q.I. no número 100, criando a escala Stanford-Binet, usada até hoje.
À medida que a ciência evolui, escorada pelos avanços da computação, o componente hereditário da inteligência identificado por Galton vai ganhando a companhia de outros fatores. Em pesquisa publicada em 1984, o educador americano James Flynn (1934-2020), tomando por base o avanço constante do Q.I. médio nos países mais prósperos — que atingiu seu ápice na década de 1970, com altas anuais de três pontos —, demonstrou que as melhorias alcançadas na medicina, na educação e no pensamento crítico haviam contribuído decisivamente para tornar a população mais inteligente, um fenômeno que ganhou o nome de “efeito Flynn”. Problema: passado o apogeu, as conquistas no Q.I. foram sendo cada vez menores até estacionarem e, na entrada do século XXI, começarem a deslizar ladeira abaixo, devagar e sempre, acendendo o sinal amarelo. E a trajetória segue em queda na capacidade cognitiva.
Um dos estudos mais incisivos sobre esse refluxo intelectual, realizado por pesquisadores da Noruega, analisou 730 000 testes de Q.I. aplicados em jovens convocados para o serviço militar obrigatório nos últimos quarenta anos. Sua conclusão: os aumentos anuais do Q.I. dos noruegueses baixaram para 2 pontos nos anos 1980, para 1,3 ponto nos 1990 e se transmutaram em recuo de 0,2 ponto neste século. Processo semelhante foi detectado no Reino Unido e na Dinamarca. Pesquisas como essas reforçam o alerta dos especialistas para mudanças no estilo de vida que, segundo eles, estão por trás do retrocesso — aí incluída, em lugar de destaque, a imersão constante e indiscriminada nos eletrônicos. As plataformas de vídeos, as redes sociais e os aplicativos de mensagem alimentam as discussões embotadoras, nas quais crenças se sobrepõem à razão e a ideologia impede o confronto de ideias enriquecido pelo saber científico — aquele que não se atém às primeiras linhas de um texto, mas se ampara nele inteiro. “As pessoas entram nas chamadas bolhas de filtragem, onde são expostas a olhares condizentes com seu perfil e blindadas de pontos de vista destoantes”, afirma Philip Boucher, pesquisador do Scientific Foresight Unit, instituto ligado ao Parlamento Europeu.
A turma mais nova, como bem aponta o francês Desmurget, é presa fácil dos efeitos deletérios do excesso digital. Estudo da Universidade de Alberta, no Canadá, mostrou que crianças de 5 anos ou menos que passam mais de duas horas por dia on-line têm chance cinco vezes maior de apresentar dificuldade de concentração e sete vezes mais risco de exibir sintomas de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). “Até 2 anos, o tempo de tela recomendado é zero, a não ser em bate-papos virtuais com a família”, decreta a psicóloga Sheri Madigan, da também canadense Universidade de Calgary. Entre 2 e 5 anos, a janela de conexão não deve passar de uma hora diária, com foco em programas educacionais e jogos. “E os pais precisam estar do lado, para ajudar na compreensão do que está acontecendo”, diz.
Fatores comportamentais, sabe-se agora, também são determinantes na evolução da inteligência. O pleno desenvolvimento intelectual na infância exige interação social, engajamento em brincadeiras e, conforme a idade, também o enfrentamento de problemas e discussões que transcorrem fora das telas. “Há evidências crescentes de que investir na prática de disciplina e autocontrole tem efeito positivo tanto no nível acadêmico quanto no Q.I. dos pequenos”, diz Adriana Melibeu, especialista em neurobiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Uma boa formação escolar é imprescindível, bem como atividades extracurriculares que puxem o cérebro e sirvam de desafio — o que vale também para os adultos (veja o quadro acima), já que instigar a curiosidade é terreno fértil para o crescimento intelectual de qualquer pessoa.
Conta pontos positivos apaixonar-se por algum assunto, especialmente se ele exige conhecimento profundo, como astronomia ou grego antigo, proporcionando um mergulho no tipo de exercício que afia a atenção, estimula a perseverança e aprimora habilidades como processamento de informações e análise. “Inteligência não é só a bagagem que adquirimos, mas a capacidade de interpretar e de se lançar rumo ao novo, ao desconhecido”, ensina Chris Frith, psicólogo da University College London. A prática de esportes é outra atividade relacionada à expansão do intelecto porque aumenta a oxigenação do cérebro, o que por sua vez incrementa a conectividade neuronal— processo que se repete na alimentação equilibrada. Consumir ovos, peixes, legumes e verduras potencializa a produção de neurotransmissores e ajuda no desempenho cognitivo.
De tanto investigar os segredos da mente, pesquisadores e cientistas não param de identificar novas ramificações para a inteligência: espacial, lógica, linguística e mais uma infinidade de variações. Há uma reflexão, inclusive, quanto à escala de valor das habilidades. “As mais importantes são relacionadas à inteligência adaptativa, como a criatividade, o bom senso, a empatia e a destreza analítica”, afirma o psicólogo Robert Sternberg, da Universidade Cornell. Outra variante, a inteligência emocional, definida como a capacidade de entender e lidar com sentimentos próprios e alheios, fincou pé no glossário do intelecto graças à publicação do best-seller de mesmo nome, do jornalista Daniel Goleman, em 1995. Nessa sopa de designações, até a mente privilegiada dos gênios (veja as ponderações de alguns deles acima) pode escorregar. Albert Einstein (1879-1955), que nunca fez teste mas teve seu Q.I. avaliado postumamente em extraordinários 140 a 145 pontos, seria reprovado no exame de inteligência emocional: o primeiro casamento, com Mileva Maric, foi desastroso e o segundo, com Elsa Löwenthal, ficou marcado pelas infidelidades. Seja qual for a medida utilizada para definir a inteligência, o essencial é que ela seja cultivada, porque só assim a humanidade caminhará para a frente, sem as radicalizações comportamentais que alimentam atualmente a estupidez dos cabeças-ocas.
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