Presidente do CFM transforma médicos em curandeiros
Foto: Reprodução
A medicina funciona há muitos séculos executando o que a ciência determina. Cientistas gastam anos enfurnados em laboratórios para identificar doenças, pesquisar formas de diagnóstico, descobrir tratamentos e transformá-los em medicamentos e terapias. Esse trabalho feito a duras penas é repassado aos médicos, que colocam em prática o que os pesquisadores decretaram.
Repentinamente, em mobilização exótica, grupos negacionistas ao redor do mundo passaram a contestar a hierarquia. Para essa gente, a ciência não é mais determinante para a escolha de um medicamento do que a convicção do médico.
No Brasil, um dos principais defensores dessa tese esdrúxula é ninguém menos que o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Luiz de Britto Ribeiro. Na entrevista estarrecedora que concedeu à jornalista Roberta Jansen, publicada no Estadão na sexta-feira (8), ele dá amostra do que passa pela sua cabeça.
Ribeiro defende que não seja vetado o uso do chamado tratamento precoce contra a covid-19, aquela mistura de cloroquina, ivermectina, azitromicina e outras invencionices reconhecidamente ineficazes. Repete o refrão de que se preocupa com a autonomia dos médicos receitarem o que acharem melhor.
Finge ignorar que a ofensiva pela cloroquina e assemelhados praticamente obrigou muitos profissionais de saúde a prescreverem esse tipo de tratamento, anulando qualquer tipo de autonomia.
Foi assim na sinistra Prevent Senior, clínica onde médicos denunciam ameaças de demissão caso não usassem o tal tratamento precoce. Também na empresa de saúde Hapvida os profissionais acusam a direção de assédio para obrigá-los a prescrever cloroquina.
O Ministério da Saúde seguiu caminho parecido. Na visita a Manaus, no auge da crise de falta de oxigênio, em janeiro, funcionários graduados da pasta planejaram instalar tendas com médicos e enfermeiros orientados a fazer o que os pacientes quisessem.
“Daríamos a opção dos doentes escolherem e não dos profissionais”, escreveu um desses emissários do ministério, o médico Gustavo Vinícius Pasquarelli Queiroz, em relatório a seus superiores de Brasília.
Como se vê, para os militantes da cloroquina a autonomia médica não passa de argumento retórico, que usam quando lhes interessa, mas que na verdade não respeitam.
Ribeiro se acha com autoridade para dizer que a ciência não teve tempo de dar respostas às questões relacionadas à pandemia, embora instituições respeitáveis do mundo todo digam o contrário. Por isso, o conselho permite o tratamento com drogas “reposicionadas”, mesmo as que foram classificadas pelos cientistas como ineficazes.
Para defender a liberdade de prescrição de cloroquina e tranqueiras do tipo para a covid-19, o presidente do CFM torce os fatos. Passando por cima dos pesquisadores, diz que “não dá para dizer que as drogas são ineficazes”, ignora o veredito já divulgado pelos melhores cientistas para dizer que “a ciência ainda vai dar essa resposta de forma definitiva”.
Reproduzindo o discurso enganoso que Jair Bolsonaro já lançou ao público dezenas de vezes, diz que se refere a “drogas seguras, usadas há 40, 60, 70 anos” – é sempre bom lembrar: usadas para outras doenças, como malária e lúpus, não para covid.
A seguir, Ribeiro coloca em confronto a prática dos consultórios contra a pesquisa feita nos laboratórios. E aponta a primeira como vencedora nessa disputa insólita:
– “A experiência observacional do médico não está sendo levada em conta e ela também é importante. Por isso, delegamos essa decisão ao médico”.
– “Tem que levar em conta o médico na ponta; não o que fica no gabinete lendo estudo e nunca encontrou um paciente na vida”.
– “Uma coisa são os estudos de gabinete. Outra coisa diferente é a prática da medicina”.
O raciocínio do presidente do Conselho de Federal de Medicina — e de alguns dos 28 conselheiros que concordam com ele — inverte o fluxo reconhecido há séculos. Por ele, a prática do médico se sobrepõe às pesquisas de “gabinete”.
É como se voltássemos aos tempos da aldeia, em que, na falta de profissional especializado, homens e mulheres mais velhos lançavam mão do conhecimento empírico para escolher ervas e terapias que usaram ao longo dos anos para curar os males de seu povo.
As vidas de muitos brasileiros foram salvas graças aos detentores desses saberes, não há dúvida. Mas a ciência chegou para sistematizar as práticas, universalizar os resultados, minimizar riscos.
Nesse estágio da civilização, não faz sentido deixar a ciência em segundo plano para prescrever remédios que prestigiadas entidades internacionais já concluíram ser ineficazes apenas porque alguns profissionais acham que é boa opção.
Os que atualmente insistem nessas práticas se parecem menos com as respeitáveis senhoras que faziam o que estava a seu alcance para ajudar suas comunidades e se assemelham mais a curandeiros.
O mais triste é que os negacionistas, agindo em meio a uma pandemia tão letal quanto a que atravessamos agora, ao invés de salvar vidas podem colocá-las em risco ainda maior.
Definitivamente, não é para isso que existem os médicos.
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