Bolsonaro adota método stalinista

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Foto: Gabriela Bilo/Estadão – 12/8/2021

Caro leitor,

a história é conhecida. Stalin determinou a coletivização dos campos nos anos 1930 e a catástrofe que se seguiu consumiu milhões de ucranianos. O paranoico ditador farejou sabotagem onde o efeito de uma burocracia inepta e desumana condenava aos magotes camponeses à morte.

Enquanto a tragédia se desenvolvia na estepe soviética, um botânico procurava desesperadamente no mundo sementes de trigo e de milho mais resistentes que pudessem suportar o clima extremo da Rússia. Era Nikolai Vavilov, um entusiasta da genética mendeliana que despachara pesquisadores ao redor do mundo em busca de uma solução que pudesse alimentar quem tinha fome.

Stalin, a exemplo de outros liberticidas, trazia para seu círculo íntimo uma miríade de oportunistas e ressentidos, quase sempre destituídos de caráter. Áulicos que disputavam o favor de permanecer vivo durante o Grande Terror. Um destes era um farsante chamado Trofim Lysenko, que convenceu o ditador soviético que a genética era uma “ciência burguesa”. Lamarckiano, Lysenko ganhava o Prêmio Stalin, enquanto Vavilov era preso, em 1940, e mandado para o Gulag.

As expedições de Vavilov levaram-no ao México, ao Brasil, ao Peru, à China, ao Japão, ao Afeganistão, aos EUA e à Síria. Ao todo, ele e seus homens percorreram 64 países em 115 viagens em busca de exemplares de plantas com genes resistentes. Julgado secretamente em 1941, o botânico foi condenado à morte. Teve a sentença transformada em 20 anos de trabalhos forçados e morreu de fome na prisão, quando tinha apenas plantas congeladas para comer. Era 1943.

Já Lysenko sobreviveu a Stalin, atrasando a ciência soviética por décadas. Nenhum cientista que apreciasse o seu pescoço desafiaria então a autoridade do farsante, o homem que mostrara a Stalin que a “ciência podia ser proletária”. O déspota condenou seu país ao atraso. Todo governante deveria conhecer seu exemplo, a começar por aquele que mais interessa ao leitor: Jair Bolsonaro. Ele e seu círculo íntimo resolveram ouvir o que a CPI da Covid classificou como um grupo de farsantes: o gabinete paralelo da Saúde, durante a pandemia. Atrasaram a eficiência da resposta à doença, causando a perda de vidas e prejuízos à retomada econômica segura.

Eis que um novo capítulo da briga de Bolsonaro contra a ciência aconteceu na semana passada. No dia 5 de novembro, chegou à chefia de gabinete do ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), astronauta e coronel reformado da Força Aérea, uma dessas cartas que têm a capacidade de destruir a reputação de quem a recebe. Vavilov a teria escrito se pudesse fazê-lo do cárcere onde foi atirado por uma ideologia que buscava submeter a ciência aos seus caprichos. O texto de dez linhas a que a coluna teve acesso era assinado pelo professor aposentado de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais Paulo Sérgio Lacerda Beirão.

“Senhor Ministro, tomei conhecimento ontem da grande honraria que me foi concedida com a promoção para a classe de Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essa é, sem dúvida, uma grande honraria nacional, o que fica evidente pelas personalidades que já foram com ela homenageadas no passado e, também, pelos ilustres pesquisadores que foram distinguidos no presente ato.” Assim começa o documento. Beirão é desses varões ilustres que sabem o valor das virtudes republicanas, que sem pietas e gravitas não há dignitas. E, sem essas, toda autoridade é impossível.

Ele continua: “O fato de ter sido indicado por uma comissão de alto nível responsável por esta escolha em muito me engrandece. No entanto, ao tomar conhecimento da exclusão arbitrária e autoritária de dois ilustres agraciados, exatamente pelo motivo de terem praticado a boa Ciência que, por isto, desagradaram o atual ocupante do Palácio do Planalto, torna a minha presença entre os agraciados muito desconfortável para mim. Sendo assim, por imperativo de consciência, venho solicitar a exclusão do meu nome dentre os agraciados”.

Não é preciso conhecer Cícero ou Kant para entender o gesto do professor. A história é conhecida do leitor. No dia 3 de novembro, os cientistas Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda figuravam na lista dos agraciados com a honraria do ministério ao lado de Bolsonaro, que também receberia a condecoração. Dois dias depois, seus nomes foram retirados da lista por um novo decreto, assinado pelo presidente. O crime deles: fazer ciência. Um de seus pecados foi desmentir o uso da cloroquina contra a covid, como qualquer pessoa que não queira ser acusada de charlatanismo aqui e no resto do mundo.

Um dia depois da carta de Beirão, outros 20 cientistas agraciados com a comenda decidiram abrir mão da homenagem em solidariedade aos colegas, afirmando assim seu descontentamento contra “uma clara demonstração de perseguição a cientistas, configurando um novo passo do sistemático ataque à Ciência e Tecnologia por parte do Governo vigente”. Bolsonaro não tem um Gulag onde enfiar cientistas que discordam de sua visão de mundo.

Nem o ministro Marcos Pontes – aquele que defendia o uso de vermífugo contra a covid-19 – pode temer as consequências de defender a ciência. Já não se demitiu quando lhe cortaram mais de R$ 600 milhões de seu orçamento. Fez muxoxos quando foi chamado de burro pelo ministro Paulo Guedes (Economia). Diante do banzé em sua Pasta armado pelos negacionistas do governo, que julgam cientistas por critérios ideológicos, põe a cabeça no travesseiro e dorme com a tranquilidade de quem está em órbita.

Como Lysenko, Pontes permanece em seu cargo. A manutenção de uma cadeira em Brasília não pode ser mais importante do que princípios, do que a coragem de dizer não, apesar de toda desesperança. Ao tornar o mérito científico dependente do favor político, degrada-se não apenas o ambiente acadêmico, mas o futuro do País. A reação dos cientistas, renunciando à láurea, traz uma lição que explica o desassombro do ataque bolsonarista ao saber: reputação, como tudo mais, só perde quem tem.

Estadão

 

 

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