Ditadura militar também era racista
Foto: Reprodução/Almir Veiga
Bairros periféricos do Rio de Janeiro foram sacudidos na década de 1970 por um fenômeno cultural que atraía multidões de jovens negros a cada fim de semana para dançar e cantar ao ritmo do soul. Era o chamado movimento Black Rio, que lotava clubes cariocas com bailes em que o visual predominante incluía o cabelo “black power”, a calça boca de sino e o sapato plataforma.
Para a grande maioria dos participantes, aquele era um momento de lazer barato, em que equipes de som faziam ecoar nos gigantescos alto-falantes os últimos sucessos da música negra americana e os hits brasileiros do mesmo estilo. Enquanto os jovens se divertiam, no entanto, a ditadura militar, que governava o Brasil na época, não via a movimentação com bons olhos.
Informes sigilosos dos órgãos de repressão das Forças Armadas mostram que os bailes eram considerados ambientes subversivos, propícios a explorar “o orgulho da ‘negritude’, o conflito de raças, as rivalidades socioeconômicas de partes do Grande Rio, a corrupção policial”. A descrição consta de um “pedido de busca” do Serviço Nacional de Informações, de outubro de 1976, em que se lê na linha do assunto: “Black Rio”.
“No acervo das polícias políticas da época, especialmente do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), há um material que diz respeito ao monitoramento muito intenso sobre as ações culturais e movimentos que afirmavam uma consciência racial, uma identidade negra”, diz o historiador Lucas Pedretti, que localizou o “pedido de busca” no Arquivo Nacional. “Um assunto que recebia particular atenção eram os bailes de música soul”.
Pedretti é autor da dissertação de mestrado “Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970”. No trabalho, ele mostra como a ditadura se preocupava com as festas, que se contrapunham ao mito da democracia racial, um dos pilares ideológicos do regime.
“A ditadura se apropriou o mito da democracia racial e o interpretou através da doutrina de segurança nacional”, explica o historiador. “Os militares queriam uma nação sem lugar para o conflito ou o dissenso”. Para eles, aqueles que reclamavam da discriminação é que estavam disseminando o “racismo negro”, expressão que aparece em muitos documentos oficiais.
Para os órgãos de repressão, subversivos estavam importando o problema do racismo por ligação com o movimento comunista internacional. Nessa interpretação exótica, dossiês do Dops datados de 1975 expressam a preocupação com a equipe de som “Black Power”, que interpretavam como um grupo de viés político.
Alguns organizadores aproveitavam os bailes para valorizar a beleza negra e aumentar a autoestima dos frequentadores, mas sem conotação de ação política direta. Um deles era Asfilófio de Oliveira Filho, o DJ Dom Filó, que em 1971 começou a fazer multidões dançarem no Renascença Clube.
“A partir de 74 passamos a ser vigiados, houve pressão em cima dos líderes das equipes de som, interditavam bailes, dificultavam a liberação dos clubes”, diz Filó.
Até que em 1975, quando saía de um clube, ele foi abordado por alguns homens que o encapuzaram e o colocaram em um camburão. Depois de rodar 20 minutos com as pessoas em silêncio, foi levado a um local sem ventilação.
“Quando tiraram o capuz, me colocaram em uma cadeira com braços para trás, com uma luz forte de frente para mim, não conseguia enxergar ninguém”, recorda Filó. “Perguntaram quem eram meus amigos, se eu era comunista, onde estavam os milhões de dólares que mandaram para o movimento. Disse que não sabia de nada daquilo”.
Depois de repetir várias vezes que seu sumiço seria notado pelos milhares de frequentadores dos bailes que promovia, acabou sendo libertado.
Outros líderes de equipe também foram vítimas da repressão.
A concepção de que as manifestações de cultura negra são potencialmente subversivas continuou mesmo depois do fim da ditadura militar. Lucas Pedretti conta que documentos de setores da inteligência das Forças Armadas datados de 1988 chamavam atenção para o enredo apresentado pela escola de samba Vila Isabel, “Kizomba, Festa da Raça”. Mais uma vez, a abordagem da questão racial era associada à subversão.
Naquele mesmo ano, a marcha contra a farsa da abolição, realizada pelo movimento negro para questionar a versão oficial para o fim da escravidão, foi acompanhada de perto pelos arapongas militares.
O historiador acredita que o pensamento social e político dos integrantes das Forças Armadas continua inalterado.
“Não houve reforma institucional, as escolas militares continuam com o mesmo tipo de formação”, afirma Pedretti.
A interpretação dos militares brasileiros sobre a cultura negra pode ser observada ainda hoje, na atuação de personagens como Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares. Desde que assumiu o cargo, ele tenta deslegitimar a importância de grandes nomes da negritude, como Martinho da Vila, Zezé Motta, Djavan e o próprio Zumbi.
Mesmo que Camargo seja civil, a negação do racismo que ele defende e pratica é baseada na formulação construída na caserna, que tanto influencia o governo de Jair Bolsonaro.
O historiador e professor de literatura comparada João Cézar de Castro Rocha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, cita algumas evidências de que os militares continuam pensando da mesma forma. Uma delas é a entrevista do general Hamilton Mourão, concedida em 2018, em que ele diz que “a malandragem é oriunda do africano”. Mourão por várias vezes negou que haja racismo no país – assim como outros generais.
“A divisão entre ala militar e ala ideológica é falsa, porque militares são ideológicos a ponto de influenciar os olavistas”, diz Pedretti.
“Não acredito que os militares vão mudar”, diz Filó, que será o narrador de um dos documentários da série “Incontáveis”, cujo tema é o tratamento dado pela ditadura à questão racial. O lançamento será no dia 7/12, no Youtube do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ,
“A cultura negra está avançando, a ponto de o presidente da Fundação Palmares recorrer a esses expedientes para tentar nos segurar. É puro mimimi, eles não vão conseguir”, diz Filó.
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