Especialista insinua que Bolsonaro quer aparelhar até o Enem
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
“Foi um Enem com cara de Enem.” Essa é a análise de Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos pela Educação, entidade referência na área no país, sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021. Apesar disso, ele considera que segue forte o sinal de alerta em torno das tentativas de interferência política no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pelo exame.
“O sinal de alerta, do ponto de vista do Inep, segue forte. A crise vai além do Enem”, ressalta Nogueira Filho. Na visão dele, o governo tentou interferir “até onde os limites institucionais permitem”.
O especialista, contudo, aprova a forma como o exame acabou sendo feito. “Foi boa notícia ver um Enem técnico. Foi um Enem com cara de Enem. Então, nesse sentido, considerando toda a confusão que foi criada ali, foi positivo. Dito isso, é de se lamentar que isso seja motivo de comemoração”, pondera Nogueira Filho.
O exame foi aplicado em meio a inseguranças sobre o desmonte da estrutura do Inep. Às vésperas da prova, gestores técnicos decidiram deixar suas funções. A debandada começou com 12 nomes, mas o número cresceu para 37 e causou apreensão entre professores, especialistas e estudantes.
Dias antes da realização do exame, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que as questões não repetiriam “absurdos” do passado e disse que a prova teria “a cara do governo”.
O Enem é a principal porta de entrada para a educação superior no Brasil. Especialistas da educação consideram que a primeira etapa da prova – que teve a redação, com um tema forte, e questões de ciências humanas, linguagens e códigos – seguiu o padrão dos últimos anos.
A segunda etapa, que contou com itens de ciências da natureza e matemática, foi aplicada no domingo (28/11). Neste ano, 3.109.762 pessoas se inscreveram para realizar as provas, menor número registrado desde 2005.
A credibilidade da prova, segundo Nogueira Filho, está sustentada em dois pilares: o caráter técnico do exame e a garantia do sigilo. Ainda assim, há sinais que se mantêm acesos: “Consolidado o Enem não está, o que a gente viu nas últimas semanas mostra exatamente isso. O movimento gerado pelos servidores não tem nada de normal”.
Além da debandada de servidores do Inep, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que o diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, Anderson Oliveira, teria retirado 24 questões após uma “leitura crítica”. Dessas, no entanto, 13 foram reinseridas devido à necessidade de calibrar perguntas fáceis, médias e difíceis. O banco de itens do Enem não foi atualizado nos últimos três anos.
“A natureza ultratécnica da avaliação, de certa forma, freou essa tentativa de interferência não técnica”, pontua Nogueira Filho. “É um ministério que está mais concentrado em caçar questões supostamente polêmicas em uma prova com alta credibilidade técnica do que fazer o que precisa ser feito.”
O ponto mais grave, na visão dele, é entender por que houve participação baixa — a menor desde 2005 — e em que medida esse resultado é responsabilidade do governo federal. Boa parte da evasão pode ser creditada à pandemia, marcada por um ensino remoto frágil e ainda mais aprofundador de desigualdades, e à consequente crise econômica, que ampliou a evasão escolar.
O especialista ainda avalia que tem havido desarticulação e fragilização de pilares erguidos nas últimas décadas no setor da educação, de modo geral. Há um entendimento de que outras políticas importantes são fragilizadas porque o governo federal abdica de seu papel coordenador e articulador de medidas.
São exemplos dessa ausência a paralisia nas discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normativo para as redes de ensino e referência para currículos escolares, e a implementação do novo Ensino Médio.
“Vai muito além da questão do Enem. O problema tem a ver com um enfraquecimento institucional do próprio Inep, que tem no Enem a sua face mais pública, mas que é responsável por uma série de outras políticas e ações que são absolutamente centrais para a educação básica brasileira, mas também para o ensino superior”, completou.
Na visão do diretor executivo do Todos pela Educação, vem ocorrendo um esvaziamento de quadros técnicos do MEC desde o início da atual gestão. Há ainda falhas no diálogo com estados e municípios e dificuldade de implementar ações.
“O governo não tem como prioridade melhorar a qualidade da educação, mas sim tornar o ministério um instrumento dessa guerra cultural”, assinala Nogueira Filho. “Esse é mais um episódio que reforça que nós temos um ministério que cumpre outros objetivos que nada têm a ver com o enfrentamento dos desafios reais da educação para que a gente tenha um quadro melhor.”
Um dos exemplos de que o foco está mais na agenda de costumes é a ausência de liderança do governo no debate do projeto que tornou permanente o Fundo de Manutenção da Educação Básica (Fundeb), em 2020. “O governo federal passou absolutamente ao largo das discussões. Na reta final, tentou participar um pouco e, quando tentou participar, quase atrapalhou”, ressalta o profissional, que considera a pauta do Fundeb a mais importante deste ciclo político.
O atual titular da pasta da Educação, Milton Ribeiro, está no ministério desde julho de 2020. Apesar de ser tido como mais contido que seu antecessor imediato, Abraham Weintraub, há uma avaliação de que Ribeiro mantém a agenda ideológica no cerne de sua atuação. “É um ministério que tem a cara do próprio presidente”, enfatiza Nogueira Filho.
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