Gilberto Gil diz que crê no Brasil apesar de Bolsonaro

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Foto: Reprodução

Em seu álbum de 1968, o compositor Gilberto Gil envergou pela primeira vez o fardão da Academia Brasileira de Letras. Fotografado de pince-nez, com olhar machadiano e zombeteiro, o artista baiano encenou uma estética rebelde para a lente do fotógrafo David Drew Zingg.

Aos 79 anos, Gil vestirá seu segundo fardão de imortal. Eleito para a cadeira 20 da ABL, com 21 dos 34 votos dos acadêmicos, o tropicalista venceu o poeta Salgado Maranhão e o crítico Ricardo Daunt, nesta quinta-feira (11). Em entrevista a este repórter, após o anúncio de sua vitória, Gil afirma que levará para a ABL aquilo que já construiu como artista e gestor cultural.

“Eu acho que é o que já tenho em mãos, o que represento, o que sou, o grau de articulação que eu consegui ter na vida em relação à questão da vida cultural brasileira. Tenho uma passagem pelo mundo institucional da cultura, como secretário de Cultura de Salvador, ministro da Cultura do país. Uma obra que tem lá seus méritos, seus valores, e um certo dinamismo, uma capacidade empreendedora mínima”, diz o compositor.

“A Academia precisa disso, especialmente depois desse momento maior de paralisação. Precisa ter agora um dinamismo. Eu ofereço isso, o que já me caracteriza. Não posso chegar à Academia sem ser quem eu sou, deixando de ser quem eu sou.”

Gil e a atriz Fernanda Montenegro, eleita por unanimidade para a cadeira 17, robustecem a face popular da ABL. O cantor também aponta para a ampliação do número de acadêmicos negros no futuro. “O significado da presença do negro na vida brasileira precisa reluzir em determinados lugares. É preciso se tornar brilho. A ideia da Academia é essa de brilho, de superfície polida, brilhosa. São oportunidades que têm sido subtraídas o tempo todo aos negros no Brasil.”

Ele admite que a capa do disco de 1968, desenhada por Rogério Duarte dentro da estética da arte pop de Antonio Dias, expressava uma postura antiacadêmica. Mudou a ABL, e mudou Gil. “De uma certa forma, era compartilhada com toda a minha geração, toda aquela turma jovem que chegava pra um campo de atividade na vida cultural brasileira e que tinha na Academia uma referência passadista, de coisa mofada. Outro dia, conversando por telefone com Ignácio de Loyola Brandão, que é acadêmico, ele me disse: ‘Gil, isso era natural, na juventude é assim. A gente tem que ser impetuoso, vigoroso’. Enfim, tem que ter uma dimensão destruidora das coisas que já estão ali, pra poder dar lugar a coisas que cheguem”, analisa o músico.

“Depois, a vida vai passando, essa volúpia transformadora se aquieta, vem pro plano do que você pode fazer, daquilo que você já entendeu que não pode. A ideia do sentimento do alcance do seu querer. Seu querer é limitado pela vida. E aí vem a possibilidade de que você entenda o significado de uma coisa como a Academia, e restitua a ela um certo sentido que você negou. Estão nela senhores e senhoras, homens já velhos, com acumulações significativas de sua vida, do ponto de vista existencial e cultural. É preciso ter apreço por isso. Eu já sou um homem velho, vou fazer 80 anos. Nem tudo pode ser alcançado.”

O tropicalista enxerga ainda o poder político da ABL num momento de ataques do governo Jair Bolsonaro a artistas e produtores. Sua crença no país treme, mas não perde o equilíbrio, nem o brilho. “Abalada, sim, o tempo todo. O terreno é tremedio, as coisas tremem, as estruturas mais frágeis são atingidas, mas não derruba o edifício civilizacional brasileiro. Não só do Brasil, mas do mundo todo. Eu acho que a humanidade está avançando, não é uma crença abstrata, é o que as minhas emoções captam, meu conhecimento capta.”

Um dos líderes do movimento tropicalista, nos anos 1960, Gilberto Gil ocupou o Ministério da Cultura nos mandatos do governo Lula, de 2003 a 2008. Ao acolhê-lo, a ABL reconhece suas contribuições à cultura brasileira como artista e pensador e sua expressão singular como letrista de talento incomum. Seu livro “Todas as Letras”, de 1996, organizado pelo também letrista Carlos Rennó, deve ganhar reedição no próximo ano, acrescido de novos comentários sobre a gênese das canções. “Estou trabalhando agora nesse material com Rennó”, ele conta.

Gil concorda com a existência de vínculos entre sua vitória na ABL e a concessão do Nobel de Literatura ao músico americano Bob Dylan. “O reconhecimento do Dylan pela Academia Sueca e o reconhecimento do Gilberto Gil pela Academia Brasileira são atitudes e gestos comuns, similares, dessa coisa que estou dizendo: as coisas avançam no mundo. Reconhecer um artista popular, grande letrista, com ligações com a música mais essencial da vida americana, o blues, a música negra. E eu aqui, com o samba, o baião, a rítmica brasileira, o fraseado brasileiro, as palavras novas com as construções poéticas novas surgindo no mundo, isso tudo a serviço dessa musicalidade brasileira, dessa arritmia brasileira. Tudo isso tem valor. O Dylan lá, eu aqui, tudo isso tem significado.”

A cadeira 20 tem como patrono o romancista e memorialista Joaquim Manoel de Macedo e já foi ocupada pelo general Aurélio de Lyra Tavares, eleito em 1970, pouco depois de integrar a junta militar que substituiu o ditador Costa e Silva na presidência, de agosto a outubro de 1969. A eleição do ex-ministro do Exército é uma das páginas polêmicas da ABL. De alguma forma, a cadeira é redimida por Gilberto Gil, exilado político durante o governo Médici.

O artista sorri com a observação de que partiu da Academia Regina, sua escola de acordeon, aos 9 anos, para a Academia Brasileira de Letras, 70 anos depois. “Agora, com os acadêmicos do Salgueiro”, brinca. Faz silêncio quando questionado se haverá patuscada do bloco baiano Filhos de Gandhy em sua posse. “Eu não sei. Eu acho que todos que me cercam, a própria Academia com suas instâncias criativas, meu campo todo de relacionamento na música, meu campo afetivo, todos eles vão se mobilizar pra dar uma ritualidade na posse.”

Folha de S. Paulo

 

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