Jurista diz que Judiciário precisa mudar para julgar racismo

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Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress

Qual o papel do direito na promoção da Justiça e como isso pode impactar os diferentes grupos sociais? Esses são alguns dos questionamentos propostos pelo livro recém-lançado “Direito Antidiscriminatório e Direito Penal”, organizado pelo professor Adilson Moreira, 50.

Segundo ele, práticas discriminatórias baseadas na raça, no gênero, na sexualidade e na classe social determinam a forma como as pessoas serão tratadas e a pena a qual serão submetidas.

O escritor afirma que há uma relação direta entre raça e a quantidade de anos que a pessoa ficará na prisão, mesmo que as condições sejam as mesmas entre os crimes cometidos por pessoas negras e brancas.

“O livro procura mostrar como práticas discriminatórias —discriminação direta, indireta, institucional, estrutural, microagressões— se manifestam no sistema de administração da Justiça criminal e propor soluções para este tema”, afirma o professor.

Moreira é doutor em direito pela Universidade Harvard (EUA) e autor também da obra “Tratado do Direito Antidiscriminatório”.

Entre as propostas debatidas, ele afirma ser necessário mudar a cultura e a educação jurídica. Para uma educação jurídica antirracista, é preciso voltar a discutir o que é Justiça em todas as áreas do direito, diz.

“Cerca de 80% do sistema Judiciário brasileiro é composto por pessoas brancas, heterossexuais, de classe alta. Boa parte tem pouco ou nenhum contato com pessoas negras. Quando você não tem contato com membros de outros grupos há uma tendência de julgar a periculosidade deles a partir de estereótipos.”

Em entrevista à Folha, Moreira fala ainda sobre os conceitos de elo geográfico, que estabelece uma correlação entre raça, culpabilidade e local da moradia, e racismo recreativo, que segundo ele está relacionado à dificuldade do Judiciário em aplicar a lei contra o racismo.

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu na última quinta-feira (28) que a injúria racial é equiparada ao crime de racismo e, portanto, esse tipo de delito é imprescritível e deve ser punido a qualquer tempo, independentemente do período que se passou do episódio.​​

O que é o direito antidiscriminatório e qual a relação com o direito penal? O que hoje nós chamamos de direito antidiscriminatório compreende uma série de normas constitucionais que têm como objetivo diminuir as disparidades entre grupos sociais por meio do nosso sistema protetivo de direitos.

No meu [livro anterior] “Tratado do Direito Antidiscriminatório”, começo a falar sobre o que é igualdade, as dimensões e a evolução deste princípio, apresento uma proposta de interpretação da igualdade baseada na perspectiva dos subordinados, várias teorias de discriminação e também princípios para políticas públicas.

O direito antidiscriminatório tem um carater transversal, porque o princípio da igualdade regula todas as áreas do direito de uma forma ou de outra. E no que se refere ao direito penal, existe a igualdade de procedimento. Infelizmente, quando analisamos a realidade social brasileira e os dados do sistema criminal, observamos que este ideal está muito longe de ser alcançado.

Práticas discriminatórias baseadas na raça, no gênero, na sexualidade, na classe social, determinam a forma como as pessoas serão tratadas, determinam a pena. Há relação direta entre raça e a quantidade de anos que a pessoa ficará na prisão, mesmo que as condições sejam as mesmas de um crime cometido por uma pessoa branca.

O livro “Direito Antidiscriminatório e Direito Penal” procura mostrar como práticas discriminatórias —discriminação direta, indireta, institucional, estrutural, microagressões— se manifestam no sistema de administração da Justiça criminal e propor soluções para este tema.

Pensando no direito penal, quando a gente aborda a ausência de igualdade no Judiciário estamos falando da elaboração das leis ou da forma como as leis são interpretadas? Estamos falando das duas coisas. Quando o Legislativo promulga uma lei, está criando uma norma para regular um determinado aspecto da realidade. Mas nós precisamos fazer uma diferenciação entre a norma e os efeitos da norma.

Uma norma pode ser moralmente neutra, pode não fazer menção a raça, sexo ou classe, mas pode ter efeitos discriminatórios.

Um dos artigos do livro analisa a súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Essa norma diz que “o depoimento de policiais é o suficiente para a condenação de pessoas em crimes relacionados ao tráfico de drogas”. Essa norma, embora não faça nenhuma menção à raça, tem um impacto desproporcional sobre pessoas negras, porque a atividade de vigilância policial é dirigida a pessoas negras.

Para uma pessoa branca ser denunciada por posse e tráfico de drogas, ela tem que estar portando uma quantidade 30 vezes maior do que uma pessoa negra. Então, como pessoas negras são tratadas de forma discriminatória pela polícia, são tratadas de forma discriminatória pelo Ministério Público, essa norma terá um impacto desproporcional em pessoas negras.

Outro exemplo são decisões que condenam pessoas negras por roubar um pacote de biscoito, um vidro de shampoo e outras coisas dessa natureza, ao passo que para ser condenado em um crime de colarinho branco, desvio de verba, o valor mínimo é de R$ 20 mil, crime este na vasta maioria das vezes cometidos por homens brancos de classe alta. É o que a gente chama de discriminação indireta.

Quando a pessoa está com drogas e é presa: se branca, será considerada usuário, se negra será presa por porte de droga. E o promotor pergunta sobre o lugar no qual a pessoa mora e supõe, a partir disso, que ela pode estar associada ao tráfico.

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro já publicou um estudo no qual explica como o lugar onde você mora determina o tipo de acusação e o tamanho da pena que você terá. Estamos diante da discriminação institucional baseada em um critério proibido por lei.

Esse é o conceito de elo geográfico? Sim. O elo geográfico estabelece uma correlação entre raça, culpabilidade e espaço geográfico. Este é um fator muito importante para entendermos o processo de encarceramento em massa no Brasil. Este é o problema da racialização dos espaços sociais.

Quando, alguns anos atrás, um comandante da Polícia Militar de São Paulo disse que não poderia tratar os habitantes dos Jardins da mesma forma que trata os moradores do Jardim Ângela, ele está falando que pessoas que moram em determinadas localidades são delinquentes e as que moram em outras localidades são honestas.

Quais são os caminhos para empregar os conceitos antidiscriminatórios na elaboração e aplicação das leis? Cerca de 80% do Judiciário brasileiro é composto por pessoas brancas, heterossexuais, de classe alta. Boa parte tem pouco ou nenhum contato com pessoas negras. Quando você não tem contato com membros de outros grupos há uma tendência de julgar a periculosidade deles a partir de estereótipos.

Por isso, neste novo livro existe uma preocupação muito forte de abordar o tema da psicologia social da discriminação. É importante entender que quando olhamos para isso, observamos que nenhum ser humano é capaz de fazer julgamentos morais neutros. Então, nós precisamos de uma reformulação da educação jurídica.

O caminho passa também pela diversidade no Judiciário? Sim. E por isso a importância também das diferentes instâncias de revisão de uma decisão. [Sobre a diversidade] não apenas cotas. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, há programas de mentoria. Esse processo de cotas é importante, mas não é o suficiente.

Precisamos também mudar a cultura jurídica, a educação jurídica. Neste livro não tem nada de muito inovador, é proposto o que deveria ser o óbvio. Para uma educação jurídica antirracista, e existem muitas faculdades de direito e professores interessados nisso, é preciso voltar a discutir o que é Justiça em todas as áreas do direito.

Qual o papel do direito na promoção da Justiça e como isso pode impactar minorias? Como isso pode promover discriminação ou emancipação?

Eu tento nos meus livros explicitar algo que deveria ser evidente: a Constituição de 1988 é um projeto de transformação social. Procura sair de uma ordem autoritária e excludente. Ela é baseada no princípio da dignidade humana e no acesso de direitos a todos os grupos sociais. Entretanto, boa parte dos nossos juristas veem a Constituição apenas como um conjunto de normas.

Você criou o conceito de racismo recreativo. De que forma ele interage com a aplicabilidade da lei de racismo pelo Judiciário? O argumento da ausência do tipo penal, da intenção de ofender, porque a pessoa tem um amigo, uma professora ou uma babá negra, aparece em 99,99% dos casos de injúria racial. “Eu estava simplesmente querendo fazer graça, fazendo uma brincadeira” é o argumento. Então, como a pessoa estava fazendo graça, não teria a intenção de ofender.

Entretanto, o humor é um mecanismo de demonstração de animosidade em relação a grupos minoritários. É um tipo de discurso de ódio. E por ser um tipo de discurso de ódio, é um tipo de injúria racial. Mas muitos tribunais se recusam [a condenar], principalmente na Justiça criminal. Muitos casos sequer são denunciados pelo Ministério Público porque “foi uma brincadeira”.

[Por isso a importância de] eliminar a diferenciação entre os crimes de injúria racial e racismo e colocar a injúria como uma manifestação de racismo. E o racismo recreativo precisa ser enquadrado na lei de racismo 7.716. Também precisamos mudar a pena, que é muito baixa.

Além disso, é preciso mud ar a cultura jurídica, porque o Judiciário não quer condenar as pessoas por racismo ou por esse racismo recreativo em que as pessoas fazem piadas ofensivas e o Judiciário diz que é liberdade de expressão, como no caso recente com a cantora Ludmilla.

Folha  

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