Justiça militar quer assento no CNJ

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Foto: STM/Divulgação

No ordenamento jurídico ocidental, a existência de um tribunal específico para tratar de crimes militares constitui uma tradição que remonta à época dos romanos. Criada em 1808, com a chegada da família real portuguesa, a Justiça Militar é a mais antiga do Brasil, dando origem às demais ramificações da Justiça. Essas são as razões históricas citadas pelo ministro general do Exército Luis Carlos Gomes Mattos, presidente do Superior Tribunal Militar (STM), para reivindicar à Justiça Militar assento no Conselho Nacional de Justiça. Gomes Mattos reforça a argumentação com uma lógica cartesiana. “O STM faz parte do Poder Judiciário. Se o CNJ existe para aprimorar o Poder Judiciário, nada mais justo e lógico que o STM se faça representar”, afirma.

Nesta entrevista ao Correio, o presidente do STM delimita as competências do tribunal para julgar crimes militares. E, novamente, recorre à história. “Vou me valer de uma citação de Rui Barbosa: ‘A Justiça Militar não julga militares. A Justiça Militar existe para julgar quem comete crimes militares”‘. Trata-se de princípio que, segundo Gomes Mattos, precisa ser esclarecido à opinião pública.

O general do Exército considera natural a participação dos militares na vida nacional, pois, em razão da formação durante a carreira, “detêm um conhecimento muito grande sobre as questões e os problemas nacionais”. Gomes Mattos defende inclusive o colega e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, um “excelente profissional”. Mas faz um reparo: “Apenas, acredito que tenha errado ao se envolver diretamente na política estando, ainda, no serviço ativo”. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que a Justiça Militar precisa ocupar assento no Conselho Nacional de Justiça?
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) existe para aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro e promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade. Essa é a razão de ser do CNJ. O STM faz parte do Poder Judiciário, então este é o principal argumento. Se o CNJ existe para aprimorar o Poder Judiciário, nada mais justo e lógico que o STM se faça representar. A Justiça Militar da União (JMU) exerce funções judiciais e administrativas como os demais tribunais e é a única sem assento no Conselho.

É um reconhecimento histórico, também.
A Justiça Militar é a mais antiga do país, tendo sido criada em 1808, logo após a chegada da família real no Brasil. Todas as outras justiças tiveram origem na Justiça Militar. Portanto, até mesmo pelo aspecto histórico, a participação da Justiça Militar no CNJ seria adequada, importante e tornaria possível a participação da voz da Justiça Militar nos constantes desafios enfrentados pelo Poder Judiciário. Quero aproveitar esta pergunta e citar que o STM, no último dia 3 de dezembro, foi contemplado com o prêmio Diamante, a mais alta premiação conferida pelo CNJ, reconhecendo a qualidade da gestão e da governança da Justiça Militar da União.

Qual a importância dos tribunais militares no século 21?
Os romanos já entendiam que os crimes militares tinham características próprias e necessitavam de legislação especial e magistrados com conhecimento específico. A existência de uma justiça especializada que julgue crimes militares, portanto, não é recente. No Brasil, desde a sua criação, em 1808, a Justiça Militar vem desempenhando destacado papel jurisdicional, se fazendo presente em momentos importantes da nossa história. Guerra do Paraguai, as campanhas militares de Canudos e do Contestado, a Marcha dos 18 do Forte de Copacabana, Segunda Guerra Mundial, as diversas missões de paz em que as nossas Forças Armadas estiveram presentes, são alguns exemplos.

E atualmente?
As Forças Armadas se modernizaram, evoluíram, não estamos mais nos tempos romanos, mas o cerne, o principal objetivo da Justiça Militar, permanece inalterado no século 21, qual seja o de julgar os crimes militares. Os crimes militares continuarão a ser cometidos, tanto por militares, quanto por civis, e a Justiça Militar estará presente para, com celeridade, cumprir o seu papel constitucional.

Como avalia o debate em curso no Supremo Tribunal Federal sobre as competências da Justiça Militar?
No momento, estão em trâmite no STF duas ações: uma ação direta de inconstitucionalidade, que questiona a competência da Justiça Militar para julgar delitos ocorridos em operações de garantia da lei e da ordem (GLO), e uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, que questiona a competência da Justiça Militar para processar e julgar civis em tempo de paz. Nas duas ações, a Procuradoria-Geral da República já se posicionou, considerando improcedentes os pedidos. As ações aguardam o julgamento, mas alguns ministros já se posicionaram no mesmo sentido da PGR. A nossa percepção é de que a competência da Justiça Militar, seja para julgar civis em tempo de paz, seja nas operações de GLO, será mantida.

Qual o limite de competência da JMU para julgar civis que cometem crimes militares?
Vou me valer de uma citação de Rui Barbosa: “A Justiça Militar não julga militares. A Justiça Militar existe para julgar quem comete crimes militares”. Esse é um dos grandes desconhecimentos da sociedade quanto à atribuição da Justiça Militar. Nós não existimos para julgar militares e, sim, para julgar quem comete crimes militares, seja o agente militar ou civil. O limite, portanto, no julgamento de civis que cometem crimes militares, é o limite da Constituição Federal e do Código Penal Militar — que lista os crimes militares que, repito, podem ser cometidos tanto por militares quanto por civis.

Qual a questão criminal mais relevante do momento para a Justiça Militar?
Acredito que não se trate de relevância ou de importância. Afinal, todos os delitos têm a sua importância. Mas na questão quantitativa, alguns delitos tornam-se importantes pela frequência com que se repetem. Nesse contexto, cito o crime de deserção, quando o militar, sem licença, falta ao seu local de trabalho por um período superior a oito dias, e os crimes relacionados ao tráfico, posse ou uso de drogas em lugar sujeito à administração militar. Se formos para o lado da repercussão junto à sociedade, tivemos, recentemente, o julgamento, e a condenação, na Primeira Instância da Justiça Militar, na 1ª Auditoria do Rio de Janeiro, do caso da patrulha que realizava operação militar no bairro de Guadalupe, onde faleceram dois civis.

Há anos as Forças Armadas protagonizam operações de segurança pública. Não é um risco expor militares a julgamento por crimes contra vida de civis?
Sim, esse quadro é real. Por diversas razões, as Forças Armadas vêm sendo chamadas para realizar operações no contexto da segurança pública, sob o manto constitucional da garantia da lei e da ordem. É um novo cenário, e, na evolução do preparo das tropas, o adestramento para esse tipo de operação vem ganhando espaço. A tropa está, sim, preparada para esse tipo de operação. Entretanto, o ser humano não é uma criação perfeita. Todos nós estamos sujeitos a cometer erros, erros estes que podem ter consequências leves ou extremamente graves. A Justiça Militar está aí também para julgar esses crimes, levando sempre em consideração a situação, o tipo da operação, o agente, o ofendido e seguindo todo o regramento processual.

Militares estão também cada vez mais atuantes na política. Tivemos um controverso general como ministro da Saúde (Eduardo Pazuello), e alguns integrantes das Forças Armadas têm se posicionado na campanha política. Esses exemplos não são um desvirtuamento da missão militar?
Esse é outro ponto a ser esclarecido. Legalmente, não há nada que impeça o militar de participar da política, em ocupar cargos políticos. A condição essencial para isso é que o militar esteja na reserva. Militares que ainda estão no serviço ativo devem manter-se afastados dos debates políticos. Ao passar para a reserva, não vejo problema nenhum na participação de militares no cenário político. E, aqui, faço um destaque. Os militares, durante toda a carreira, estão estudando, se aperfeiçoando. Ademais, pela vivência nacional, em consequência das transferências, detêm um conhecimento muito grande sobre as questões e os problemas nacionais. Podem, sem dúvida, em muito contribuir na busca de soluções para esses problemas. Quanto ao general controverso da sua pergunta, eu o conheço. É um excelente profissional, competente, dedicado, honesto e chegou ao topo da carreira pelo reconhecimento do seu trabalho ao longo de sua trajetória militar. Apenas, acredito que tenha errado ao se envolver diretamente na política estando, ainda, no serviço ativo.

Recentemente a Justiça comum ganhou um novo Tribunal Regional Federal, a fim de redistribuir melhor os processos. Como avalia a distribuição de circunscrições militares pelo país?
Embora não estejamos vinculados às Forças Armadas e não julguemos apenas militares, conforme expliquei em uma das perguntas anteriores, os militares são os nossos principais jurisdicionados. A organização da Justiça Militar da União (JMU), no território nacional, a distribuição das Circunscrições Judiciárias Militares pelas regiões, procura estar alinhada com o efetivo militar presente em cada região. Temos 12 Circunscrições Judiciárias Militares espalhadas pelo país, que estão divididas em Auditorias. A minha avaliação é de que a atual distribuição das Circunscrições Militares, bem como das suas auditorias, pelo Brasil, está coerente e atende em boas condições as necessidades da Justiça Militar da União.

Como incentivar a maior participação de mulheres na Justiça Militar?
Atualmente, temos no Superior Tribunal Militar a ministra Elizabeth (Rocha), de um total de 15 ministros. É uma pequena representatividade na instância superior da Justiça Militar. Existe uma explicação, na composição do STM, de 15 ministros, 10 são oficiais generais do último posto das Forças. Para que haja uma indicação feminina, proveniente das Forças Armadas, é imperativo que uma mulher alcance o topo da carreira, o que ainda não ocorreu. Então, no momento, as mulheres concorrem a uma das cinco vagas existentes para os ministros civis.

E nas instâncias inferiores?
No caso da Primeira Instância, temos juízes e juízas federais da Justiça Militar, que são concursados, com chances iguais para homens e mulheres. No momento, o percentual feminino entre os magistrados da Primeira Instância é de aproximadamente 30%. A participação da mulher nos cargos de chefia e assessoramento em toda a JMU está em torno de 36%. São percentuais que, se não são os ideais de 50% para homens e 50% para mulheres, indicam o crescimento da participação feminina na Justiça Militar da União, comparando-se com períodos anteriores.

É possível comparar a Justiça Militar no Brasil com a de outros países?
Essa pergunta é oportuna e de uma feliz coincidência. Recentemente, participei do Encontro Internacional de Justiça Penal Militar e Policial, realizado na Colômbia. O encontro reuniu representantes de 16 países. A diferença principal, talvez, seja o fato de que, no Brasil, a Justiça Militar, desde a Constituição de 1934, compõe o Poder Judiciário. Nos outros países, essa Justiça especializada está ligada ao Poder Executivo e às próprias Forças Armadas, trabalhando com peculiaridades de cortes marciais. Cada país tem os seus hábitos, costumes, tradições, legislações, não cabendo aqui estabelecer o que é melhor ou pior. Avalio que a organização que temos no Brasil seja adequada por estar a Justiça Militar inserida no Poder Judiciário, seguindo os seus ritos processuais e afastando as Forças Armadas das questões relativas a julgamentos.

Correio Braziliense

 

 

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