Programa brasileiro de imunização está acéfalo há 5 meses

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Foto: Dado Ruvic/Reuters

Responsável pelo controle de doenças no Brasil, o PNI (Programa Nacional de Imunizações) passa por um momento inédito em seus 48 anos de vida. Sem um coordenador desde a saída de Franciele Fontana em 7 de julho, o programa tem desafios que vão além da covid-19, com a queda brusca nas coberturas vacinais do calendário nacional de vacinação.

Em 2020, o país atingiu patamares de vacinação similares aos de 1980 —a queda na cobertura vacinal é sentida desde 2016, mesmo antes da pandemia do novo coronavírus. Mesmo diante desse cenário, o PNI enfrenta pela primeira vez um presidente da República e integrantes do governo que adotam um discurso antivacina.

E esse discurso vai além, na prática, vai além de ser contra a vacinação infantil contra covid-19. Autoridades no tema ouvidas pelo UOL falam que o projeto de imunização foi deixado de lado pelo atual governo. “Eu digo que o PNI é mais um morto pela covid no Brasil”, compara a presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Rosana Onocko Campos.

Até o símbolo da campanha, o Zé Gotinha criado em 1986, foi deturpado e colocado “armado” em imagem publicada pelos filhos do presidente.

“A verdade é que governo Bolsonaro desmontou o PNI. A gente tem tido, em diferentes estados, falta de vacina —não porque não as temos, mas porque não chega. O ministério deixou insumos se vencerem aqui em Guarulhos. É um descaso muito grande, e isso é uma tragédia porque o programa é um patrimônio brasileiro que existe antes do SUS”, completa.

Ao todo, o PNI distribui 300 milhões de doses de imunizantes todos os anos (sem contar covid-19), que são aplicadas em mais de 38 mil salas de vacinação espalhadas pelo Brasil.

Toda estrutura fez o país se tornar uma referência mundial em controle de doenças entre países em desenvolvimento.Sem coordenação desde o dia 7 de julho, quando Franciele pediu exoneração, o PNI não teve mais um coordenador. Chegou a ter o pediatra Ricardo Gurgel indicado e nomeado publicado no Diário Oficial, em 7 de outubro, mas ele não tomou posse porque teve o nome vetado por posições a favor da vacina e contrárias ao que pensa o presidente Jair Bolsonaro.

“Eu considero [a negativa ao cargo por defender as vacinas] um grande elogio, porque só reforça a minha convicção pessoal. Deve ser por isso a dificuldade em encontrar alguém para querer o cargo, se estiverem realmente procurando alguém com esse perfil [antivacina],” diz ele ao UOL.

Gurgel diz que a falta de um coordenador traz um prejuízo à população em um momento em que as coberturas vacinais para todas as doenças estão em queda no país.

Se não tem coordenação, não tem diretriz para enfrentar a queda. Eu achei que ia poder contribuir para que houvesse essa melhora nas coberturas, que já estavam baixando antes da pandemia e desse governo. Mas ela exacerbou com as duas coisas em conjunto.
Ricardo Gurgel

Para ele, pessoas que hoje se posicionam contra a vacina da covid-19 não são apenas contrárias à imunização da doença. “Dizer que essa vacina é experimental é uma mentira muito grande! Antes de uma vacina chegar à aplicação em um humano passa por diversas fases de teste, só chega quando é comprovadamente segura. Quem procura coisas nessa vacina não é contra só ela, mas visceralmente contra qualquer vacina”, pontua.

A epidemiologista Carla Domingues coordenou o PNI entre 2011 e 2019 e passou pelos governos de Dilma Rousseff, Michel Temer e o próprio Bolsonaro, quando pediu para deixar o cargo.

Ela afirma que a principal mudança que percebeu é que o governo transformou o PNI em um programa de governo, não mais de estado.

“Nós temos um programa que sempre foi colocado como prioridade a questão técnica, tomando todas as decisões com base científica. Justamente por ser apartidário, o PNI fez com que a população aceitasse a vacina. Lamentavelmente hoje há esse uso político. Em vez de ser indutor, o próprio ministério induz a população a ter dúvidas”, diz.

Para Domingues, sem coordenação, o PNI passa por um momento de fragilidade inédito. “É difícil ter uma avaliação da situação epidemiológica e propor ações. Dificilmente alguém que esteja ali como substituto vai lançar uma ação porque ele não tem legitimidade”, afirma.

O coordenador tem o papel de estimular, propor ações, debater, fazer a interlocução com as sociedades científicas. Hoje não se tem uma voz do governo que vá às redes sociais ou à TV estimular a vacinação. Ninguém alerta a população do risco de 84% das cidades terem cobertura vacinal de covid baixa. Não se tem sequer um diagnóstico para saber porque essas cidades não estão vacinando
Carla Domingues

Por fim, ela ainda diz que o PNI sofre por falta de dados precisos sobre vacinação. “Tivemos agora, recentemente, uma campanha multivacinação. Qual cobertura atingiu? Quantas crianças tiveram o resgate da vacinação com esquema atrasado? A gente não sabe”, pontua.

O presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Juarez Cunha, afirma que as entidades já tiveram um prenúncio do que viria com o atual governo quando ele anunciou o fim do CTAI (Comitê Técnico Assessor de Imunizações), em 2019. “Isso foi uma grande surpresa porque todo país tem um órgão técnico para assessorar a imunuzação”, conta.

Com o fim do comitê (que havia sido criado em 1991), as sociedades e entidades médicas, além de representantes de estados e municípios, ficaram fora do debate do tema. “Quase dois anos depois é que criaram câmaras técnicas temáticas, chamadas de acordo com o assunto. Mas ficamos 2019 e 2020 sem CTAI, ou seja, dois anos sem ter um órgão consultivo”, diz.

Para ele, a falta de uma coordenação do PNI demonstra, na prática, que a gestão não coloca o tema como prioridade. “No nosso ponto de vista, o desmonte do PNI é uma falta de respeito com o programa e com os servidores da saúde competentes que estão lá”, pontua.

Cunha afirma que o desafio enfrentado por esse governo é gigante no tema, já que o país enfrenta um problema com a queda das coberturas vacinais do calendário nacional desde 2016 —e que se acentuaram no ano passado.

“O ministério já chamava a atenção para essa queda [antes desse governo]; e dentre as causas, muitos especialistas colocam que havia uma falta de campanhas, de comunicação adequada que levou a essas baixas coberturas. Já era discutido, mas com esse governo além da crítica de não ter campanhas, ainda temos a de governantes e colegas falando contra as vacinas e criando a desconfiança —e isso, claro, não afeta só a vacina contra a covid”, explica.

Um dos maiores exemplo de descaso com a imunização é a criação de uma consulta pública para decidir se uma vacina deve ou não ser incluída pelo SUS, como foi feito agora para o caso da covid-19. “Nenhuma vacina pode ser usada sem a análise da Anvisa, que garante a efetividade e segurança. No comitê se debatia aspectos como o custo-efetividade, mas sempre emitindo recomendações respaldadas pela ciência. Nunca houve uma consulta ao público nesses moldes”, diz.

Procurado pelo UOL, o Ministério da Saúde não respondeu por que a demora, nem quando vai indicar um nome para coordenar o PNI.

Sobre a queda de coberturas vacinais, a pasta diz que “segue monitorando” e “intensificando as estratégias necessárias para reverter este cenário.” “Nos últimos três anos, além de campanhas de influenza, poliomielite e de multivacinação (para a atualização da carteira de vacinação), também foram promovidas estratégias de vacinação contra o sarampo”, afirma.

Mesmo em tempos de pandemia, o ministério diz que a recomendação dada é que “os processos de trabalho das equipes de saúde sejam planejados com o objetivo de imunizar o maior número possível de pessoas contra as doenças, conforme orientações do Calendário Nacional de Vacinação.”

“Em 13 de dezembro, o ministério lançou o Plano de Reconquista das Altas Coberturas Vacinais, em parceria com a Fiocruz. A ação estratégica tem como meta que o aumento na cobertura vacinal seja homogêneo em todo o país até 2025”, completa.

Uol  

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