Violência policial no Brasil é denunciada ao mundo
Foto: MARCOS PORTO/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Relatores da ONU criticam o governo de Jair Bolsonaro por “fracassar” diante da violência policial, cobram respostas, denunciam o “aumento exponencial” de operações durante a pandemia e alertam que o Brasil está violando tratados internacionais e mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos.
Numa carta enviada ao governo brasileiro no dia 13 de dezembro de 2021 e obtida pelo UOL, os relatores da ONU apontam que têm recebido informações sobre uma ação “sistemática” de violência da política, principalmente nas favelas do Rio de Janeiro. Elas resultaram em “diversas mortes, incluindo o assassinato desproporcional de afro-brasileiros”.
Nesta semana, uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo revelou como o presidente está preparando um decreto pela “defesa dos direitos humanos” dos policiais, um gesto interpretado como um aceno ao segmento num ano eleitoral.
Mas, na ONU, o alerta vai numa direção diferente. A carta assinada pelos relatores Tendayi Achiume, Dominique Day, Morris Tidball-Binz e Nils Melzer deixa claro o mal-estar dos órgãos internacionais diante da violência. “Durante a pandemia, o número de operações policiais, assim como sua letalidade e violência, aumentou exponencialmente”, destacou o documento.
Os números, segundo eles, revelam que o incremento de mortes por operações policiais vinha ocorrendo desde 2018. Naquele ano, elas aumentaram 19,6% em comparação a 2017, e 11% das mortes violentas intencionais no país foram o resultado de embates com as autoridades policiais. “75,5% das vítimas desses encontros violentos foram afro-descendentes”, destaca.
Mas o processo ganhou força no primeiro ano de Bolsonaro no poder. “Desde 2019, as operações policiais se tornaram mais intensas, com o aumento da brutalidade e da violência utilizadas pelas forças policiais”, diz a carta.
O documento destaca como, nos últimos meses, diversos alertas foram lançados e como a violência policial mobilizou os órgãos internacionais. A carta cita, por exemplo, como a Alta Comissária para Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, apresentou um relatório no qual cita o caso de um jovem que foi assassinado no complexo Salgueiro em maio de 2020. “Além disso, ela indicou que de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ‘a taxa de mortalidade em 2019 devido a intervenções policiais foi 183,2% maior para pessoas de descendência africana do que para os brancos'”, disse.
Em agosto de 2021, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial também abordou as alegações de que a polícia realizou duas operações violentas nas favelas do Rio de Janeiro, em violação a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de junho de 2020 que proibiu temporariamente as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a duração da pandemia.
“O Comitê observou que a polícia supostamente ignorou a proibição, já que o número de operações policiais aumentou entre outubro de 2020 e a primeira metade de 2021”, destaca.
Só em 2021, o Complexo Salgueiro foi o alvo de 20 operações policiais entre janeiro e outubro, e 26 indivíduos foram mortos nesta área.
Fracasso em punir policiais
Um dos alertas da carta se refere à impunidade. “Estamos alarmados que a maioria dessas alegações não tenha sido devidamente investigada de acordo com os padrões internacionais, e estamos preocupados com a recente demissão do órgão que monitorou as atividades policiais”, destacou.
“Em carta dirigida ao Governo de Vossa Excelência, em 25 de agosto de 2021, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial expressou preocupação com o fracasso do Governo de Vossa Excelência em responsabilizar as forças policiais por atos violentos e racistas contra afro-brasileiros, o que resultou na repetição de atos semelhantes e perpetua o racismo estrutural prevalecente na aplicação da lei brasileira”, disse.
Na avaliação dos relatores, o cenário descrito de violência policial indica que o estado está violando suas obrigações internacionais.
“Queremos expressar nossa mais profunda preocupação com as alegações acima mencionadas que, se confirmadas, equivaleriam a uma violação do direito à vida, conforme estabelecido no artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no artigo 6 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992”, alertam.
Esses atos e omissões também poderiam violar a proibição absoluta da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, estabelecida no artigo 5 da Declaração Universal.
Há também um alerta sobre o desmonte realizado no controle das operações. Um deles foi o fim do Grupo de Ação Especializada em Segurança Pública, que até então tinha se concentrado na supervisão e controle externo da atividade policial. Em seu lugar, em 2021, foi criada a Coordenação Geral de Segurança Pública que, segundo a carta, “não tem competência para investigar e apresentar queixas sobre casos individuais de abuso policial, nem para abrir inquéritos civis e iniciar outras ações envolvendo práticas policiais”.
“Observamos com preocupação as informações recebidas sobre a recém-criada Coordenação Geral de Segurança Pública, que pode não estar equipada para realizar monitoramento e investigação independente de crimes envolvendo policiais”, completa.
Entre 2007 e outubro de 2021, 941 operações foram realizadas na área metropolitana do Rio de Janeiro como retaliação contra assassinatos ou ataques contra agentes do Estado. Estas operações são conhecidas como “operações de vingança”. Estima-se que 401 mortes tenham ocorrido devido a estas operações.
“As polícias civis e militares, assim como o Governo do Estado, operam sob a noção de ‘a realidade da guerra’ no Rio de Janeiro, criando uma justificação permanente para a incursão da polícia em áreas sensíveis e transformando em rotina a violência policial militarizada de tal forma que ela se fundiu com as atividades policiais regulares”, denuncia a carta.
O documento ainda denuncia o caráter racista das ações policiais. “A última pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que 78,9% das vítimas da brutalidade policial no Brasil são negras”, diz.
“Preocupa que estas ações da polícia sejam parte da persistente discriminação racial sistêmica e histórica contra os afro-brasileiros. Estas atividades podem representar uma violação da proibição da discriminação racial e do princípio de igualdade perante a lei estabelecida nos artigos 1, 2 e 5 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), que foi ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968”, alerta.
Citando um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil feito em 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o texto destaca “o ciclo de violência racial está enraizado em padrões culturais difundidos de desvalorização e subjugação étnica e racial em toda a sociedade brasileira que geraram discriminação estrutural histórica, preconceito e desigualdade que, por sua vez, perpetuaram uma cultura perversa de dominação racial expressa em um ciclo interminável de violações”.
Um dos fatos denunciados pela entidade internacional foi a operação policial entre os dias 20 e 22 de novembro, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). Segundo os relatores, a ação policial ocorreu após a morte de um sargento da polícia durante uma patrulha no bairro Itaúna, no Complexo do Salgueiro.
A operação policial resultou em pelo menos 8 mortes e, em 22 de novembro, moradores da região encontraram corpos em uma área florestal de São Gonçalo.
“Familiares das vítimas entraram na água para localizar e resgatar os corpos. De acordo com as informações recebidas, os corpos tinham buracos de bala e sinais de tortura. Uma pessoa relatou que um membro da família foi levado de casa e executado na floresta”, relataram os peritos internacionais, indicando que a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí e o Instituto Médico Legal chegaram ao local 32 horas após a ação policial e foram acompanhados pela Polícia Militar.
Mas, na carta, os relatores dão sinais de terem perdido a paciência com o governo brasileiro. “Gostaríamos de lembrar ao Governo de sua Excelência que os titulares de mandatos de Procedimentos Especiais levantaram preocupações semelhantes várias vezes no passado recente” afirmam.
“Em maio de 2021, expressamos nosso alarme sobre a morte de pelo menos 26 pessoas durante uma operação policial no bairro de Jacarezinho, no Rio de Janeiro”, dizem. Eles ainda destacam para cartas e alertas emitidos nos últimos anos.
Os relatores apontam que, de fato, o governo brasileiro respondeu às cartas enviadas nos últimos anos. Mas eles alertam que elas não foram suficientes. “Lamentamos que as respostas fornecidas não tenham informações detalhadas sobre as medidas tomadas para garantir a imparcialidade de tais investigações; o resultado de tais investigações e as ações concretas tomadas para evitar a recorrência de tais violações de direitos humanos”, disseram.
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