Brasil de Bolsonaro “legalizou” a corrupção, diz ONG internacional
A elevação do financiamento público aos partidos e o afrouxamento de controles sobre eles geram uma situação de corrupção “quase legalizada” no país, afirma o chefe no Brasil da Transparência Internacional, Bruno Brandão.
O braço brasileiro da ONG divulgou no último dia 9 um documento pedindo que organismos estrangeiros pressionem para que o país reveja o que chama de retrocessos institucionais, frisando a questão anticorrupção.
O documento cita, por exemplo, a ampliação do fundo eleitoral público deste ano para R$ 5 bilhões e a falta de transparência nos gastos e de mecanismos de prestação de contas.
No ano passado, a reformulação da Lei de Improbidade Administrativa, aprovada no Congresso, estabeleceu que os partidos não podem mais ser processados com base nessa legislação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tentou ainda fazer uma megarreforma no Código Eleitoral, que foi travada no Senado.
Brandão é crítico da abordagem ao tema da corrupção dada pelas três principais candidaturas à Presidência neste ano. Diz que a pauta está obstruída e “intoxicada por disputas narrativas e de interesses”.
Sobre o ex-juiz e pré-candidato Sergio Moro (Podemos), diz que ele hoje se restringe ao falar de sua experiência pessoal, sem propostas concretas de políticas públicas.
O relatório da entidade, de 37 páginas, critica os três Poderes e menciona a anulação de casos da Lava Jato por causa do alegado elo com crimes eleitorais e uma série de medidas do governo Jair Bolsonaro (PL), como o pagamento das emendas de relator a parlamentares.
Quais as chances de o Brasil sofrer de fato retaliações internacionais por causa das questões citadas no relatório? Não é uma possibilidade: já está sofrendo. Em 2020, em medida sem precedentes, o grupo de trabalho antissuborno da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) criou um subgrupo para monitorar a situação do Brasil [em relação ao enfrentamento da corrupção]. Na próxima reunião plenária, em junho, entregará um relatório sobre esse monitoramento. Pode ter impactos muito relevantes do ponto de vista da inserção internacional do país.
Algumas das medidas questionadas [na OCDE] são fruto de um debate acalorado nos últimos anos sobre abusos da Lava Jato. É o caso da Lei de Abuso de Autoridade e a reformulação da Lei de Improbidade. A Lava Jato não mostrou a necessidade de freio de arrumação em pontos em que ocorreram abusos? Certamente essa experiência trouxe lições importantes de vários aspectos que deveriam ser corrigidos. O próprio modelo de forças-tarefas [de investigação] é institucionalmente frágil. Haveria muito o que aprimorar. O que vimos não foi uma correção de erros, foi um desmanche.
A força-tarefa da Amazônia estava fazendo um trabalho importantíssimo e também foi desmantelada.
Vemos isso em uma escala assustadora. São marcos legais que o país levou décadas para construir.
Existe uma ideia disseminada de que o clamor anticorrupção de anos atrás gerou o enfraquecimento da política e consequentemente as crises institucionais de hoje. Como o sr. vê? Um sistema político baseado na corrupção sistêmica, de financiamento ilícito de campanha, distorce a representação democrática. Torna o sistema político uma ferramenta de atuação em prol de interesses de grupos privados. O resultado é um quadro de país campeão mundial da desigualdade social.
Sobre os efeitos da Lava Jato, o setor privado se adaptou rapidamente. Identificou uma mudança no ambiente de risco, das novas leis, e transformou suas práticas. Pouquíssimas empresas tinham sistemas de conformidade.
Óbvio que ainda há muito a avançar, mas houve uma transformação, o que não ocorreu no sistema político, que parece que não aprendeu nada.
Ou aprendeu a lição equivocada, de como se tornar mais imune à aplicação da lei. Os partidos não mudaram suas práticas, a democracia interna, de transparência. Ao contrário: passaram leis que reduziram ainda mais os controles sobre a utilização de recursos públicos pelos partidos.
Ampliaram enormemente o financiamento público [de campanhas]. Ele reagiu a toda a essa experiência da Lava Jato criando mecanismos para que se blindasse disso tudo, quase que legalizando a corrupção. É uma corrupção institucionalizada, por meio da explosão [da quantidade] de recursos públicos e da redução absurda dos mecanismos de controle.
Em 2018, a corrupção foi o grande tema da eleição, o que não deve se repetir neste ano. Qual foi o saldo, não só na figura do presidente, mas das bancadas, governadores eleitos na onda? País nenhum do mundo verdadeiramente avançou na luta anticorrupção apenas na via penal. É um processo muito mais amplo de transformação das relações entre o Estado, a sociedade e o setor privado. É fundamentalmente um processo de construção de cidadania.
Isso nunca esteve no debate, nas propostas desses grupos que se aproveitaram da indignação com a corrupção. Foram incapazes de promover um debate sério sobre reformas, sobre políticas públicas.
E quais as perspectivas para esse debate na eleição de 2022? Será muito mais olhando para o passado do que para o futuro. Será uma disputa de acusações, de narrativas sobre o que aconteceu em anos passados. Com muito pouco espaço para uma discussão de reconstrução de marcos legais e institucionais.
Vemos um revisionismo, em uma disputa de interpretações do passado.
A candidatura do PT poderia valorizar o seu histórico. Foi muito por crédito de seus governos que o Brasil fortaleceu mecanismos institucionais para o combate à corrupção. Hoje, as propostas vão no sentido de questionar esse próprio legado e adotar medidas de menor independência das instituições.
O governo Bolsonaro não tem nada mais do que uma retórica populista e autoritária para esse e outros grandes temas. Seu legado foi um desmanche sem precedentes da capacidade do país de enfrentar a corrupção.
As propostas desse grupo da Lava Jato são extremamente baseadas na experiência limitada desses atores no campo do enfrentamento penal do problema. E com pouquíssimas referências naquilo que é mais relevante: a construção institucional e de políticas públicas.
A atuação política do ex-juiz Moro, destacando seu papel no Judiciário, não prejudica a credibilidade do trabalho feito, já que politiza a questão? O primeiro movimento [dele] de participar de um governo com as credenciais de Bolsonaro, explicitamente autoritário e antidemocrático, já foi algo que prejudicou muito o legado dos feitos como juiz.
Não é bom para o sistema político e nem para o sistema judicial que exista a migração tão abrupta do Judiciário.
A própria Transparência Internacional defende medidas que impõem quarentena para diversas autoridades que almejem cargo no Supremo Tribunal Federal ou para entrar no sistema político.
O problema é que essa discussão é feita no Brasil a partir de interesses de ocasião para inviabilizar uma determinada candidatura, não pensando no modelo institucional.
O sr. considera que havia motivação política nas autoridades da operação desde o começo do trabalho? Não acredito que houvesse motivação originária. São agentes que dedicaram suas vidas a essa causa. Experimentaram a realidade do nosso sistema de impunidade.
A operação parece ter feito cálculos políticos em alguns de seus movimentos porque as defesas eram políticas. E isso acabou levando a grandes erros e excessos.
O contra-ataque para destruição do legado da operação empurra também nesse salto dos agentes para o sistema político.
É muito prejudicial para o nosso sistema judiciário porque abre uma imensa brecha para questionamentos e deteriora a credibilidade, a independência das atuações.
A Transparência Internacional questiona no relatório a interferência do governo na Polícia Federal. O diretor-geral já foi trocado pelo presidente quatro vezes. Houve queda na produtividade? Na chegada ao poder de forças populistas autoritárias, o que primeiro fazem é capturar as instituições de controle porque são limitadoras do governante. Bolsonaro seguiu à risca o roteiro de captura do Estado.
Isso tem um impacto gigantesco para o enfrentamento da corrupção.
Muito mais grave é o controle político de um braço armado do governo federal, que pode fazer ameaças muito além, para nosso regime democrático.
O sr. se refere à possibilidade de se tornar, digamos, uma “polícia política”? É grande a preocupação que temos hoje, não só em relação à Polícia Federal, mas a outros órgãos, que ultrapassaram o patamar de blindagem de aliados e alcançaram o patamar muito mais grave, e perigoso, de perseguição de adversários.
Sempre houve disputa de espaços dentro das instituições, mas hoje se observa de maneira explícita um movimento de retaliações contra agentes que tentam confrontar interesses. Perdem suas funções, cargos, são expostos a sindicâncias. Isso assumiu um grau alarmante.
[Há] atuação de inteligência clandestina, ilegal, que monitora membros da oposição, vozes críticas na sociedade. O grande risco que temos é a utilização desse aparato de inteligência, de espionagem, sem controle no contexto eleitoral. Pode ser o pior cenário que tenhamos que nos preocupar.
É preocupante a utilização cada vez mais disseminada de instrumentos de vigilância digital, sem os marcos adequados de controle democrático. A legislação brasileira é muito falha para o controle dessas ferramentas. Permite a aquisição sigilosa delas. Não se sabe o que hoje está em posse das Polícias Civis, do Ministério Público nos estados. Não se tem um inventário do que é utilizado como ferramenta de monitoramento, vigilância e espionagem pelo Estado brasileiro.
Na série de reportagens chamada Vaza Jato [sobre diálogos de procuradores no aplicativo Telegram], um site publicou reportagem afirmando que havia uma aliança da Transparência Internacional com o então procurador Deltan Dallagnol. O sr. faz algum reparo em relação ao contato que havia com ele? A Transparência Internacional tem diálogo e cooperação com os órgãos anticorrupção do Ministério Público em mais de cem países. Seria impensável que não tivesse com o Ministério Público brasileiro no contexto da Lava Jato. Assinamos um acordo de cooperação formal com o Ministério Público Federal para capacitação técnica, campanhas contra a corrupção, pelo controle social.
O foco da atuação da Transparência Internacional no contexto da Lava Jato foi na formulação de propostas de reformas, de políticas públicas, que levamos à discussão da sociedade. Não temos contato hoje porque são pré-candidatos.
BRUNO BRANDÃO, 39
Economista, é diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil desde 2016. É mestre em gestão pública pela Universidade de York e em relações internacionais pelo Instituto Barcelona de Estudos Internacionais
Folha de SP