Medo que STF e Congresso têm de Bolsonaro ameaça democracia
A leniência com que o Congresso e o STF (Supremo Tribunal Federal) trataram o presidente Jair Bolsonaro (PL) em seu mandato criou riscos para a estabilidade da ordem democrática, diz o professor de direito constitucional Emilio Peluso Neder Meyer, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Nas últimas semanas, o presidente voltou a lançar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas e atacou integrantes do STF, acusando os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes de atuar para favorecer o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições deste ano.
Para Meyer, a nova investida de Bolsonaro contra o STF faz parte de um processo de degradação institucional que tem se aprofundado nos últimos anos por causa da ausência de respostas das instituições aos vários crimes de responsabilidade que foram imputados ao presidente.
Num livro lançado em inglês durante a pandemia, “Constitutional Erosion in Brazil” (Hart, 2021), o professor defende a tese de que o arcabouço institucional criado pela Constituição de 1988 vem sofrendo um prolongado processo de erosão, acelerado após a chegada de Bolsonaro ao poder.
Na sua avaliação, o Supremo contribuiu com esse processo ao tomar decisões contraditórias de grande impacto político no auge da Operação Lava Jato, mas saiu-se bem ao fortalecer políticas de enfrentamento da Covid-19 quando o presidente tentou sabotar as ações dos governos estaduais.
Apesar disso, a falta de resposta da Câmara dos Deputados aos pedidos de impeachment apresentados contra o presidente e decisões judiciais como a que o isentou no caso dos disparos de mensagens por WhatsApp nas eleições de 2018 acabaram fortalecendo Bolsonaro, afirma Meyer.
Homem jovem branco de cabelos castanhos, vestido com camisa branca e paletó cinza claro, em pé com uma estante de livros ao fundo.
O professor Emilio Peluso Neder Meyer, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. – Divulgação
Seu livro faz um balanço negativo da atuação do STF nos últimos anos. Por quê? Algumas decisões tomadas pelo Supremo causaram muita instabilidade ao lidar com questões de grande impacto na política. Decisões que determinaram o afastamento de parlamentares acusados de corrupção e colocaram em xeque suas imunidades, por exemplo, foram contraditórias.
Ao mudar a jurisprudência sobre prisões após condenação em segunda instância, o STF pareceu agir premido pela ideia de que a Operação Lava Jato era a salvação da política nacional e se exigia maior rigor do tribunal. Depois, reviu sua posição novamente em tempo muito curto, após três anos.
São decisões típicas de um constitucionalismo instável, em que atores importantes dentro do próprio sistema, como o Supremo, operam de uma maneira que oferece insegurança em relação às expectativas criadas na sociedade, o que contribui para o enfraquecimento do sistema constitucional.
Esse processo se exacerbou com Bolsonaro, por causa das ações do próprio presidente. O STF então passou a trabalhar em outra direção, o que mostra que a Constituição de 1988 também pode ser uma fonte de resiliência, de força institucional para barrar quem a contrarie como Bolsonaro.
A atuação do Supremo foi positiva na pandemia, ao reconhecer que a nossa organização federativa deve promover a cooperação nas políticas públicas. Houve a criminalização da homofobia e decisões que refutaram claramente a ideia de que uma intervenção militar seria constitucional.
As ações do Legislativo e do Judiciário não acabaram moderando as inclinações autoritárias do presidente? A ideia de que as instituições estão funcionando bem, como o ministro Luís Roberto Barroso sempre diz, é uma leitura quase inocente do que tem acontecido no Brasil. Se o receituário estabelecido pela própria Constituição de 1988 fosse seguido, elas estariam funcionando melhor.
A noção de que o papel dessas instituições seja fazer a moderação da política é um equívoco, que tem a ver com uma tradição autoritária da nossa formação. O Poder Moderador, exercido pelo imperador, nasceu em 1824 e desapareceu. Não há lugar para esse conceito na Constituição de 1988.
A função de moderação é central para o funcionamento do nosso presidencialismo de coalizão, mas nesse caso é um papel a ser exercido pelos políticos. Não é papel do Supremo propor arranjos de conciliação, como os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli tentaram na presidência do tribunal.
Se temos um presidente cometendo crimes de responsabilidade, não tem sentido chamá-lo para conversar. Isso simplesmente não cabe no contexto da Constituição de 1988. Muito menos no caso das Forças Armadas, que não têm nenhum papel político a exercer nesse sentido nem deveriam ter.
É um assunto que diz respeito à relação do Executivo com o Legislativo. Arranjos como os que têm sido feitos pelo centrão com Bolsonaro têm criado distorções no processo orçamentário, mas têm sido tolerados. Parece que é o que sobrou para conter um presidente declaradamente autoritário.
O Congresso e o Supremo foram lenientes com o presidente? Bolsonaro é um líder populista, que acredita no contato direto com o povo e acha que independe da existência das instituições, que poderiam até ser extintas. Teria sido melhor se as instituições tivessem deixado claro que um presidente que as despreza dessa forma não pode exercer essa função.
O número de crimes de responsabilidade imputados ao presidente é estarrecedor, mas ele se livrou do impeachment ao fazer o acordo com o centrão. O Congresso talvez tenha sido muito leniente diante do perigo que Bolsonaro representa para a democracia construída pela Carta de 1988.
Quanto ao Supremo, acreditar que fosse possível promover algum tipo de conciliação com o chefe de outro Poder foi um movimento muito perigoso. Na minha avaliação, só serviu para criar um espaço que permitiu ao presidente se tornar ainda mais agressivo em suas investidas contra o STF.
Esse processo de deterioração institucional é irreversível? Vai depender do resultado das eleições e de como ele será recebido pelos principais atores. A reeleição do presidente Bolsonaro contribuiria para aprofundar essa erosão, talvez de forma vertiginosa. O risco de um colapso da nossa ordem democrática seria muito maior num segundo mandato.
O que ele poderia fazer que já não tentou e não conseguiu? Se ele se reeleger e conseguir formar uma maioria mais ampla no Congresso, suficiente para aprovar emendas constitucionais, certamente tentará alterar a composição do Supremo e a organização do Judiciário, como outros governantes autoritários fizeram na Hungria e na Polônia.
É bem difícil de acontecer no Brasil. Num país como o nosso, organizado numa Federação, é mais difícil obter o tipo de consenso necessário para mudanças como as feitas nesses outros países. Mas não acho que seja uma possibilidade que possa ser pura e simplesmente desconsiderada.
Se o bolsonarismo conseguisse dominar o STF, perderíamos uma instituição que poderia representar um freio considerável para políticas de caráter autoritário. Com a adesão das Forças Armadas ao bolsonarismo, haveria uma tendência de crescimento da militarização dos postos de governo.
Se ele não for reeleito, esse processo de erosão poderá ser revertido? A Constituição de 1988 tem os elementos necessários para que isso aconteça. O Supremo não está fadado a ser um tribunal que só contribui para a instabilidade política. Pelo contrário, o STF tem mostrado que pode tomar decisões importantes para a proteção do sistema constitucional.
Algumas decisões da corte foram desrespeitadas, como as que cobraram proteção para a população indígena na pandemia e as que determinaram ao Congresso a divulgação de informações sobre as emendas orçamentárias articuladas pelo centrão. Esse desrespeito flagrante terá consequência muito negativa nos próximos anos. Ainda que a gente tenha outro presidente, ele sempre poderá olhar para o passado recente e perceber que, se não quiser cumprir determinada decisão, ele não cumpre. Qualquer que seja o presidente que esteja lá.
Quanto ao Congresso, dependeria do tamanho da oposição bolsonarista e da sua forma de atuação. Um Congresso renovado pode se propor a regulamentar a Constituição de 1988, em vez de se contrapor a ela como Bolsonaro, cujo governo foi pródigo em dizer que ela não serve para nada.
As instituições estão preparadas para responder a uma contestação do resultado eleitoral, se ele for derrotado nas urnas? O Tribunal Superior Eleitoral deu passos interessantes, mas aquém do que talvez seja necessário. Quando você tem um presidente da República que diz claramente que não vai ser contido, e ele de fato não se deixa conter, talvez os remédios tenham que ser remédios mais amargos.
O TSE iniciou uma investigação contra o presidente depois que ele levantou suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas. Essa investigação deveria ser levada adiante e precisaria terminar o quanto antes para produzir resultados, inclusive a inelegibilidade do presidente, em caso de condenação.
Claro que as chances de isso acontecer são remotas, mas decisões tímidas podem ter efeitos muito danosos num processo de erosão institucional. Ao absolver a chapa de Bolsonaro na ação que tratou dos disparos de mensagens de WhatsApp em 2018, o TSE emitiu sinais contraditórios.
A Justiça Eleitoral está aparelhada para combater a desinformação nas eleições? Veja o caso do Telegram. Se uma empresa ignora as autoridades, suas atividades deveriam ser suspensas. Seria um sinal muito forte, mas, se for necessário, quanto antes melhor. Se uma medida como essa for tomada muito tarde, pode ser vista como oportunística e causar instabilidade.
Mas suponha que o Telegram seja suspenso. O que vem depois? Qual será o aplicativo que ocupará seu lugar? O TSE terá ferramentas para detectar essa mudança e promover o controle necessário? As redes sociais também têm contribuído para o processo de erosão institucional que vivemos.
Os inquéritos conduzidos pelo STF mostraram o que pode acontecer no submundo da internet. Mas é provável que a ultradireita que se projeta e angaria votos nesse universo eleja muita gente para o Congresso neste ano, levando pessoas com posições muito heterodoxas ao Legislativo.
RAIO-X
EMILIO PELUSO NEDER MEYER, 41
Professor associado de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG. Publicou “Ditadura e Responsabilização: Elementos para uma Justiça de Transição no Brasil” (Arraes, 2012), “Decisão e Jurisdição Constitucional” (Lumen Juris, 2021) e “Constitutional Erosion in Brazil” (Hart, 2021), sem previsão de lançamento no Brasil.
Folha de SP