Indulto de Bolsonaro à Silveira é golpista
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O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer a maior afronta ao Supremo desde o início do seu mandato ao conceder a graça a Daniel Silveira. E a questão será, também ela, examinada pelo tribunal. Ainda que a concessão do benefício seja uma prerrogativa do presidente, a que a autoridade costuma recorrer em períodos natalinos, como uma espécie de herança da benevolência do rei, é preciso que, em regimes constitucionais, exponham-se critérios em vez de premiar pessoas previamente escolhidas.
Bolsonaro pode até ficar chocado, mas ele não é um monarca absolutista, e a faculdade de conceder a graça não o torna uma instância revisora do Judiciário. O recurso nunca foi empregado com esse propósito e, portanto, é fácil sustentar que a decisão é ilegal porque nasce como desvio de finalidade. Não se trata da concessão de graça, mas de um ato de afronta ao Supremo, que fere o princípio da independência entre os Poderes.
A propósito: antes do julgamento de recursos, nem há o trânsito em julgado. Bolsonaro concedeu uma espécie de “graça” prévia para quem nem era ainda formalmente condenado. É uma aberração.
Na justificativa, ele apela ao inciso XII do artigo 84 da Constituição, que faculta ao presidente tal prerrogativa, e ao artigo 734 do Código de Processo Penal. O espírito da lei resta claro no artigo de tal código e nos seguintes. Graça ou indulto se destinam àqueles que estão cumprindo pena. O presidente resolveu agir porque não gostou do resultado do julgamento —quase unânime, é bom destacar. A ser como quer, ele se torna, a partir de agora, o juiz dos juízes.
Um decreto tem de ter uma justificativa. E o de Bolsonaro explica assim a graça concedida a Silveira:
“Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público” e “considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão”…
O presidente está a dizer que só ele é o legítimo intérprete da Constituição e das leis, de modo que os ataques do deputado à ordem democrática e a clara incitação à violência contra os ministros da Corte resguardariam o “interesse público”. Mais: também chama para si a última palavra sobre a imunidade parlamentar.
Ao fazê-lo, ignora matéria jugada pelo próprio tribunal, que já assentou em outros julgamentos que a liberdade de expressão não é sinônimo de crime e que a prerrogativa da inviolabilidade dos parlamentares serve ao exercício do mandato, não à delinquência. Bolsonaro decide como se a discricionariedade presidencial para a concessão da graça se desse num vazio jurídico e jurisprudencial ou num país em que inexiste a separação entre os Poderes da República.
É evidente que o mandatário está se lixando para Silveira. Viu, no caso, a oportunidade de investir na bagunça. O que ele quer? Se o tribunal declarar a ilegalidade de seu decreto —e é ilegal—, ele teria, então, o seu aguardado pretexto para virar a mesa. Desde 1º de janeiro de 2019, investe no golpe. Há laivos de golpismo até nos dois discursos de posse que fez.
Lembrem-se da frase que os bolsonaristas vivem repetindo por aí, em seu vomitório diário de mistificações e indignidades: “Acuse os adversários do que você faz, chame-os do que você é”. Olavo de Carvalho, que criou na internet um troço que pretendia ser uma filosofia “prêt-à-utiliser”, atribuiu a Lênin tal porcaria. Nunca ninguém encontrou esse troço em livro nenhum do Vladimir. Escreveu coisas até piores. Mas isso não.
Há, na impostura, a evidência de um ardil. Bolsonaro e seus acólitos, eles sim, atribuem a seus inimigos aquilo que praticam. A divisa, convenham, justifica qualquer coisa. Ela transforma toda ação, por mais violenta e indecente que seja, em mera reação defensiva. É o que está lá no decreto: o “Mito” dos insanos faz da benevolência um ato de monarca absolutista porque, diz, está defendendo a liberdade de expressão, que o Supremo estaria ameaçando.
Trata-se de um decreto imoral, ilegal e golpista.