Justiça suspende censura a comédia ‘proibida’ pelo governo
A juíza Daniela Berwanger Martins, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, suspendeu nesta terça-feira (5) um despacho que ordenava a retirada dos serviços de streaming do filme “Como se tornar o pior aluno da escola”.
O despacho do Departamento de Proteção e de Defesa do Consumidor (DPDC), ligado ao Ministério da Justiça, foi divulgado no dia 15 de março. A censura alegava que o filme fazia apologia à pedofilia.
No dia seguinte, em 16 de março, outro órgão ligado ao Ministério da Justiça, a Secretaria Nacional de Justiça (SENAJUS), mudou a classificação indicativa do filme de 14 para 18 anos de idade.
Como o despacho que censurava o filme era baseado na classificação indicativa anterior, de 14 anos, a juíza Daniela Berwanger considerou que ele não tem mais validade.
“Considerando que falha na classificação indicativa do filme foi apontada como situação fática a dar ensejo à decisão, com a sua alteração para o limite máximo pela SENAJUS o motivo indicado para o ato deixa de se fazer presente. Diante disso, é imperioso reconhecer que a decisão deixa de ter compatibilidade com a situação de fato que gerou a manifestação de vontade, tornando a motivação viciada, e, consequentemente, retirando o atributo de validade do ato”, diz a decisão desta terça.
A suspensão foi feita a partir de um pedido do Ministério Público Federal e a Associação Brasileira de Imprensa, que alegavam que a censura era um cerceamento da liberdade de expressão.
O que levou à nova classificação indicativa?
O primeiro despacho que determinava a censura foi publicado após a produção ficcional ser atacada por bolsonaristas nas redes sociais por conta de uma cena em que crianças sofrem assédio sexual de um personagem adulto.
No dia seguinte, além de mudar a classificação de 14 para 18 anos, o Ministério da Justiça também recomenda que o filme seja exibido após as 23h em televisão aberta. A nova classificação etária, com os devidos descritores de conteúdo, deve ser utilizada em qualquer plataforma ou canal de exibição de conteúdo classificável em até cinco dias corridos.
Todas as obras audiovisuais, como filmes, séries e novelas, devem ter a informação da classificação indicativa recomendada, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Canais de televisão aberta e por assinatura e serviços de streaming são obrigados a exibir a recomendação antes do início de qualquer programa.
Em relação ao horário de exibição, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal, não há restrição ou imposição de períodos de transmissão e sim a recomendação aos programadores dos horários mais indicados.
Responsável por alterar a classificação indicativa do filme, José Vicente Santini comanda a Secretaria Nacional de Justiça desde agosto passado e já passou por outras posições de prestígio no governo Bolsonaro, como a de secretário-adjunto da Casa Civil. Foi exonerado em 2021, depois de ter usado um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) para uma viagem internacional. Depois da exoneração, foi nomeado secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, até julho do ano passado, quando assumiu o cargo no ministério da Justiça.
O Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça argumentou que a suspensão busca “a necessária proteção à criança e ao adolescente” e prevê multa de R$ 50 mil por dia em caso de descumprimento. Em 2017, a pasta havia liberado o filme com a classificação indicativa de não recomendado para menores de 14 anos.
A determinação foi aplicada a Netflix, Globo (dona das plataformas Telecine e Globoplay), Google (YouTube) , Apple e Amazon (veja, abaixo, o que as plataformas disseram).
Ao jornal O Globo, o ator Fabio Porchat – que interpreta o adulto que assedia sexualmente dois alunos de uma escola – ressaltou que o filme é uma peça de ficção.
“Como funciona um filme de ficção? Alguém escreve um roteiro e pessoas são contratadas para atuarem nesse filme. Geralmente, o filme tem o mocinho e o vilão. O vilão é um personagem mau. Que faz coisas horríveis. O vilão pode ser um nazista, um racista, um pedófilo, um agressor, pode matar e torturar pessoas…”, disse.
“Quando o vilão faz coisas horríveis no filme, isso não é apologia ou incentivo àquilo que ele pratica, isso é o mundo perverso daquele personagem sendo revelado. Às vezes, é duro de assistir, verdade”, continua.
Juristas ouvidos pelo g1 afirmaram que a ordem do Ministério da Justiça feriu o inciso 9 do artigo 5 da Constituição. O inciso 9 diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Eventuais limites da liberdade de expressão só podem ser discutidos pelo judiciário.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu em uma ação direta de inconstitucionalidade que nem mesmo a exibição de um programa em horário diverso ao da classificação indicativa poderia resultar em penalidade, o que demonstra como a proibição da exibição do filme contraria a jurisprudência.
“Neste caso, o Ministério da Justiça está ultrapassando os limites de suas competências. E mais, é uma contradição lógica entre uma decisão, que considera o filme apto para qualquer pessoa com mais de 14 anos, e, em uma segunda decisão, atuando fora do âmbito das competências do Ministério da Justiça, resolve proibir o filme em um ato típico da ditadura militar”, afirma o jurista e especialista em direito constitucional Gustavo Binenbojm, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Bolsonaro, Gentili e Feliciano
“Como se tornar o pior aluno da escola” é baseado no livro de mesmo nome escrito pelo humorista Danilo Gentili e lançado em 2009. Ele atua e é um dos roteiristas do filme.
No passado, o humorista era bem visto pelos bolsonaristas. Em 2016, ele havia criticado a deputada Maria do Rosário (PT-RS) no episódio em que o então deputado Jair Bolsonaro disse que ela não merecia ser estuprada.
Em 2019, já presidente, Bolsonaro manifestou solidariedade a Gentili quando o humorista foi condenado por injúria contra a deputada.
“Me solidarizo com o apresentador e comediante Danilo Gentili ao exercer seu direito de livre expressão e sua profissão, da qual, por vezes, eu mesmo sou alvo, mas compreendo que são piadas e faz parte do jogo, algo que infelizmente vale para uns e não para outros”, escreveu o presidente da República no Twitter na ocasião.
O próprio filme agora censurado pelo governo Bolsonaro foi elogiado pelo deputado federal bolsonarista Marco Feliciano (PL-SP) – que já se intitulou “soldado de Bolsonaro”, foi expulso de um partido por apoiá-lo na eleição de 2018 e participou do evento de filiação do presidente ao PL, no ano passado.
Em 2017, na época do lançamento, Feliciano postou no Twitter uma foto ao lado do cartaz de “Como se tornar o pior aluno da escola” com os dizeres “Parabéns, @DaniloGentili – há tempos não ria tanto”.
Desde a eleição de Bolsonaro, porém, Gentili tem criticado de maneira recorrente o governo Bolsonaro. Em novembro, por exemplo, chamou de otários os apoiadores do presidente que ainda o defendem.
E, nos últimos dias, quase 5 anos após o lançamento, foram os bolsonaristas que capitanearam os ataques ao filme “Como se tornar o pior aluno da sala”. Na tarde de segunda-feira (14), o deputado Marco Feliciano disse que se juntaria a outros parlamentares para fazer uma “ação coordenada” em relação ao filme.
O parlamentar também apagou o tuíte em que elogiava a produção e parabenizava Gentili. “Confesso que ñ me recordo da cena q faz apologia à pedofilia, devo ter saído para atender o telefone”, justificou o parlamentar.
No último domingo, após os ataques ao filme, Gentili escreveu: “O maior orgulho que tenho na minha carreira é que consegui desagradar com a mesma intensidade tanto petista quanto bolsonarista. Os chiliques, o falso moralismo e o patrulhamento vieram fortes contra mim dos dois lados. Nenhum comediante desagradou tanto quanto eu. Sigo rindo”.
Como é a cena?
No filme, Pedro (vivido pelo ator Daniel Pimentel) encontra um caderno com técnicas sobre como colar em provas e como fazer bagunça na escola. Como ele está com chances de ser reprovado, ele decide encontrar o autor do livro, em busca de mentoria.
A etiqueta colada no caderno diz “Cristiano A. Vidal”. Ele e o amigo, Bernardo (Bruno Munhoz), encontram o endereço de Cristiano, interpretado por Fábio Porchat.
Na verdade, Cristiano não é o autor do caderno. O personagem de Porchat diz que teve o caderno roubado e que sofria bullying do autor do caderno (Danilo Gentili) quando estava na escola.
Ele ameaça ligar para os pais dos meninos para avisar que eles querem trapacear. Os meninos começam a discutir entre eles, e começa a cena que viralizou. O trecho criticado mostra Cristiano chantageando os garotos: “A gente esquece o que aconteceu e em troca vocês batem uma punheta para o tio”.
Os garotos jogam desodorante em Cristiano para se desvencilhar dele e saem correndo. Na cena seguinte, os meninos conversam sobre o ocorrido. “Foi mal mesmo, cara. Eu não queria que você pegasse no pinto”, diz Pedro para Bernardo, na fila da cantina.
Cristiano reaparece no fim do filme. Ele é escolhido para ser diretor da escola.
O que disseram as plataformas quando houve a censura
Em nota, o Globoplay e o Telecine informaram que estão atento às críticas ao filme, mas que a decisão de retirá-lo do ar configurava censura.
O YouTube, plataforma do Google, disse que não vai comentar o assunto. Já o Prime Video, da Amazon, informou que o filme não consta no catálogo da plataforma.
Apple e Netflix não se manifestaram até a última atualização desta reportagem.
Leia a íntegra da nota do Globoplay e do Telecine:
O Globoplay e o Telecine estão atentos às críticas de indivíduos e famílias que consideraram inadequados ou de mau gosto trechos do filme Como Se Tornar O Pior Aluno Da Escola mas entendem que a decisão administrativa do Ministério da Justiça de mandar suspender a sua disponibilização é censura. A decisão ofende o princípio da liberdade de expressão, é inconstitucional e, portanto, não pode ser cumprida.
As plataformas respeitam todos os pontos de vista mas destacam que o consumo de conteúdo em um serviço de streaming é, sobretudo, uma decisão do assinante – e cabe a cada família decidir o que deve ou não assistir.
O filme em questão foi classificado, em 2017, como apropriado para adultos e adolescentes a partir de 14 anos pelo mesmo Ministério da Justiça que hoje manda suspender a veiculação da obra.
G1