Kits de robótica a escolas sem água custaram R$146 milhões

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Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

O FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) já efetivou empenhos de R$ 146 milhões para a compra de kits de robótica, identificou a área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União). O recurso é destinado a 29 municípios de Alagoas e 10 de Pernambuco.

A Secex (Secretaria-Geral de Controle Externo), que fornece subsídios técnicos para o julgamento de processos no TCU, recomenda que o governo Jair Bolsonaro (PL) suspenda todos repasses de dinheiro federal para a compra de kits de robótica.

O documento, obtido pela Folha, é relacionado a procedimento aberto a partir de representação do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE). A relatoria no TCU é do ministro Walton Alencar Rodrigues e o processo ainda não foi apreciado pelo tribunal.

A representação e o processo no TCU tiveram como base as revelações da Folha sobre repasses de dinheiro federal que priorizaram prefeituras com contratos com uma mesma empresa, a Megalic. Os donos têm ligação com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Sete cidades alagoanas receberam neste ano R$ 26 milhões de dinheiro federal para robótica, apesar de sofrerem com deficiências de infraestrutura básica, como falta de salas de aula, internet, computadores e até água encanada. Ao somar os valores recebidos por outros dois municípios pernambucanos, também com contratos junto a Megalic, o valor chega a R$ 31 milhões.

Isso representa 79% do que foi gasto no 1º trimestre na rubrica específica para compra de equipamentos e mobiliário, na qual se inclui o gasto com kits de robótica.

A empresa Megalic funciona numa casa em Maceió e tem como sócio Edmundo Catunda, pai do vereador de Maceió João Catunda. A relação entre eles e Lira é pública. O vereador, a empresa e o presidente da Câmara negam irregularidades.

Após a publicação da reportagem, o FNDE transferiu, em 12 de abril, mais dinheiro para outras duas prefeituras comprarem kits de robótica. O município de João Alfredo (PE) recebeu R$ 2,1 milhões e já pagou a empresa. A Prefeitura de Joaquim Gomes (AL) recebeu R$ 234 mil.

Esses valores referem-se a transferências já efetivadas pelo FNDE. Já a apuração da área técnica do FNDE envolveu também os empenhos, primeira fase da execução orçamentária e que reserva o dinheiro para determinado fim.

Os R$ 146 milhões empenhados referem-se à compra de 831 Soluções de Robótica Educacional. Cada solução envolve um conjunto de robôs, materiais de apoio e cursos de capacitação de professores.

A relação de empenhos levantada pelo TCU indica priorização a prefeituras de Alagoas. Os empenhos somam R$ 109,4 milhões para 29 municípios alagoanos —em 22 casos os recursos são de emendas de relator do Orçamento. As dez cidades de Pernambuco, por sua vez, ficam com R$ 36,7 milhões.

Os empenhos identificados pelo TCU incluem as cidades que já receberam os recursos e que foram citadas pela Folha, como também é ressaltado pelo tribunal. São eles: União dos Palmares, Canapi, Santana do Mundaú, Branquinha, Barra de Santo Antônio, Maravilha e Flexeiras, de Alagoas, Bom Jardim e Carnaubeira da Penha, de Pernambuco.

O estado de Alagoas recebeu, diz o documento do tribunal, “três vezes mais empenhos para o Programa Educação Conectada [que inclui os kits] do que o estado em segunda posição (PE) e mais de cinquenta vezes o estado em quinto lugar (SC)”. O órgão cita incoerências com os dados do Censo da Educação Básica, que deveria ser considerada nos critérios técnicos.

No documento do TCU, é recomendado que o FNDE “suspenda os repasses de recursos para a aquisição de Solução de Robótica Educacional no âmbito do PAR [Plano de Ações Articuladas, mecanismo de transferências do fundo]”. A sugestão é que em cinco dias todos os municípios beneficiados sejam notificados.

Ligado ao MEC (Ministério da Educação), o FNDE é controlado por indicações de partidos do centrão. O presidente, Marcelo Lopes da Ponte, era assessor de Ciro Nogueira (PP-PI), atual ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, do mesmo partido de Lira e um dos líderes do bloco de apoio à atual gestão federal.

Para o TCU, “não resta esclarecido e evidenciado quais critérios foram observados pelo FNDE no processo de aprovação dos pedidos e celebração dos Termos de Compromisso para a aquisição das aludidas Soluções de Robótica Educacional”.

A Folha tem mostrado a ausência de critérios técnicos na liberação de recursos.

Enquanto o governo Jair Bolsonaro libera recursos da educação para aliados, o MEC trava R$ 434 milhões a prefeituras de todo o país e deixa paradas construções de creches, escolas, salas de aulas e quadras.

Ao todo, 1.780 obras que foram pactuadas entre municípios e o governo federal, a partir de 2012, estão aptas a receber dinheiro federal. O governo Bolsonaro, entretanto, não efetiva as transferências.
A Megalic não fabrica os equipamentos e trabalha como intermediária.

A empresa tem vendido os robôs para prefeituras por R$ 14 mil, valor 420% superior ao pago por parte deles, como a Folha também revelou —essa informação foi considerada na análise do TCU.

A recomendação ressalta que resolução do FNDE sobre transferências do PAR prevê a observância da “capacidade operacional do ente federativo” para a a execução dos objetos pactuados.

“Caberia ao FNDE verificar, em relação às demandas lançadas no PAR para aquisição das Soluções de Robótica Educacional, a capacidade operacional do ente federativo favorecido com o repasse”, diz o documento, fazendo referência às informações trazidas pela Folha sobre escolas sem estrutura física adequada mas beneficiadas com robótica.

O órgão pontua que as regras para pagamentos de emenda de relator do Orçamento deveriam também atender ao que preconiza as regras da resolução do FNDE. Arthur Lira é responsável por controlar em Brasília a distribuição de parte das bilionárias emendas de relator do Orçamento, fonte dos recursos dos kits de robótica.

A secretária de Educação da cidade de Flexeiras (AL), Maria José Gomes, confirmou à reportagem que Lira atuou para liberar os recursos federais para a compra de equipamentos de robótica. A prefeitura, disse a gestora, também contou com a consultoria de uma assessora parlamentar ligada ao vereador João Catunda.

O órgão do TCU defende que as prefeituras que receberam recursos federais para a compra dos equipamentos suspendam a execução dos termos de compromisso celebrados até que o tribunal decida sobre o mérito da questão.

O tribunal também questiona os valores dos kits e pede ao FNDE a memória de cálculo. O fundo não tem ata de registros de preços sobre isso mas os técnicos do TCU identificaram que, no sistema do órgão, a solução robótica já aparece com valor definido, de R$ 176 mil.

Além de comprar cada kit por R$ 14 mil, os contratos incluem outros custos como material didático para alunos e professores e formações para docentes. O que eleva os contratos —em alguns contratos, cada solução de robótica, que inclui um conjunto de kits e o pacote de materiais e formações, é orçado por R$ 176 mil.

A empresa garantiu atas de registro de preços em vários municípios, em editais bastante similares entre eles. Além de prever os mesmos valores, as descrições do produto licitado condizem com as do robô fornecido pela empresa.

“Todo episódio de mau uso de recursos públicos, seja por corrupção ou desperdício, é reprovável e exige uma atuação firme do Tribunal de Contas da União. Infelizmente, é mais um caso de uma série aparentemente infinita”, disse o senador Alessandro Vieira.

Com Milton Ribeiro no comando do MEC e políticos do centrão no controle das transferências do órgão, o fundo virou uma espécie de balcão político. Dados oficiais da pasta mostram uma explosão de aprovações de obras, ausência de critérios técnicos, burla no sistema e priorização de pagamentos a aliados.

Ribeiro perdeu o cargo no fim de março, sete dias após a Folha revelar áudio em que ele dizia que privilegiava um dos pastores lobistas a mando de Bolsonaro.

Além do TCU, as suspeitas de corrupção no “balcão do MEC” seguem na mira de Polícia Federal e CGU (Controladoria-Geral da União).

Folha