Presidente do IBCCrim acusa Bolsonaro de “desvio de poder”
O presidente Jair Bolsonaro (PL) buscou tomar o lugar do STF (Supremo Tribunal Federal) como instância de absolvição ao conceder indulto ao deputado federal Daniel Silveira, diz a advogada Marina Coelho Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Para a criminalista, essa conduta configura desvio de poder e viola a Constituição.
“O arcabouço do indulto foi usado agora como um palanque político, de eleição, e como uma afronta às instituições do Brasil”, afirma.
A advogada diz que o indulto individual tem origens em situações humanitárias, e tal característica não está presente no caso do deputado. Ela afirma que as motivações de defesa da liberdade de expressão e do equilíbrio entre Poderes apresentadas por Bolsonaro não devem ser aceitas como justificativas válidas, e que o indulto não deve levar à interrupção do processo contra o congressista.
“O indulto não extingue o processo, extingue a pena de prisão”, afirma Marina. “Não há nenhum efeito imediato, a meu ver, a não ser criar um tumulto jurídico e político.
O decreto do presidente da República que concedeu o perdão ao deputado Daniel Silveira está de acordo com a legislação ou contém ilegalidades? A graça, que é o indulto individual, e o indulto coletivo têm uma história, não foram criados agora. A razão de ser desses instrumentos é o caráter humanitário, a questão individualizada daquela pessoa, o porquê de ela não poder cumprir a pena de prisão. Vamos imaginar um caso em que uma pessoa tem uma doença grave ou terminal. Esses sim são casos de concessão de graça.
O indulto individual concedido pelo presidente não tem caráter humanitário, em primeiro lugar. Ele está sendo usado numa perspectiva política e como uma via de suposta revisão da decisão do STF. Há um desvio de poder nesse ato administrativo e por isso ele é inconstitucional.
A medida do presidente Bolsonaro é inédita no direito brasileiro? Advogo há 20 anos e nunca vi algo assim. Não conheço caso de concessão de graça para alguém numa característica tão pessoalizada quanto essa. O arcabouço do indulto foi usado agora como um palanque político, de eleição, e como uma afronta às instituições do Brasil.
Em seu decreto, o presidente invoca a defesa da liberdade de expressão e do equilíbrio entre os Poderes, sugerindo que poderia corrigir excessos do STF. Como vê essas justificativas? Vejo como um desvio de finalidade do ato administrativo. O presidente está se imiscuindo de forma ilegítima, irracional e inconstitucional no poder do STF. Na verdade, ele está dizendo que vai corrigir uma decisão do STF. O Executivo não tem poder de fazer essa revisão.
O presidente citou como precedente um voto do ministro do STF Alexandre de Moraes favorável a um indulto coletivo concedido em 2017 pelo então presidente Michel Temer (MDB). Na ocasião, Moraes escreveu que “não se pode trocar o subjetivismo do chefe do Executivo pelo subjetivismo de um outro Poder”. A lógica desse voto se aplica ao indulto concedido por Bolsonaro? Não. O indulto do Temer tinha um caráter coletivo, tinha uma justificativa que era específica em relação à extinção da pena e tinha aspectos humanitários. No caso de Bolsonaro, a motivação não está de acordo com as regras formais. Ele motivou como se fosse uma instância revisora.
Se o indulto for considerado válido, ele pode ser aplicado imediatamente, mesmo que o processo ainda não tenha terminado —uma vez que o deputado ainda pode recorrer ao próprio STF? Não. O indulto não tem nada a ver com o processo, tem a ver com a execução da pena de prisão. Ainda pode haver mudanças na pena. O indulto só poderá valer após o trânsito em julgado, ou seja, quando não houver mais recursos. O indulto não extingue o processo, extingue a pena de prisão. Então na verdade o processo tem que continuar. Não há como rasgar tudo e dizer que acabou. Não há nenhum efeito imediato, a meu ver, a não ser criar um tumulto jurídico e político.
Caso seja considerado lícito, o perdão ao deputado terá efeito somente sobre a pena de prisão ou atingirá também outras punições decorrentes, como a inelegibilidade? O indulto individual não passa uma borracha na condenação, ele vai continuar sendo um condenado. O presidente não pode absolver alguém, se entender que é o caso. Não existe isso. Essa é a confusão do decreto. O decreto dá a entender que o presidente teria um poder, seria uma instância superior de revisões jurídicas. Ele não tem isso. O que o presidente tem é um poder de extinguir uma pena de prisão.
Qual a sua avaliação sobre a pena imposta ao deputado pelo STF? A punição foi adequada ou excessiva? A gente precisa entender que o direito penal tem um caráter pedagógico e simbólico, mas não pode ter um caráter de expiação. Então o que nesta pena se caracterizar como expiação, poderia ser uma pena menor. Se a gente considerar que no Brasil a pena do homicídio simples é de 6 a 12 anos, e o deputado foi punido com de 8 anos e 9 meses, a gente pode pensar que dentro do sistema essa é uma pena altíssima.
Uma pena excessiva do STF poderia justificar o perdão presidencial? A quantidade da pena não é um argumento de caráter humanitário. Se formos pensar no caráter humanitário, essa pena nem é tão alta, pois no Brasil temos a progressão de regime e a pessoa vai ficar um tempo menor no regime fechado.
Quais são os possíveis cenários a partir de agora? O que eu vejo é que o processo vai continuar. Há presunção de inocência até que o processo seja encerrado. Não há como indultar alguém que ainda é inocente, que não foi condenado em definitivo.
Como avalia esse episódio na já conturbada relação entre o presidente e o STF? Esse embate institucional vai corroendo as estruturas da nossa democracia, isso é muito preocupante. Estamos apagando incêndios e pouco construindo pela nossa democracia. Acabamos ficando com muitas incertezas que são muito perigosas. A campanha para tirar a credibilidade do STF também é muito ruim. Muito do nosso trabalho de defesa dos direitos humanos e dos direitos dos cidadãos é feito lá. Essencialmente a gente tem que chegar ao STF para que os direitos dos cidadãos sejam reconhecidos. A credibilidade do STF e uma instância com esse poder são essenciais.
Raio X
Advogada e doutora em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, além de especialista em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra, em Portugal. É presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)