Haddad lança livro com nova visão sobre a odisseia humana ao longo da história

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Foto: Marlene Bergamo-22.nov.18/Folhapress

Quando Fernando Haddad (PT) publicou um artigo na Ilustríssima sobre a criação de uma moeda sul-americana e a integração regional, muita gente observou que o conteúdo nada tinha a ver com a agenda de um pré-candidato a governador de São Paulo.

O que o ex-prefeito da capital paulista e ex-ministro da Educação no governo Lula queria com o texto escrito em parceria com o economista Gabriel Galípolo?

A resposta, ou parte dela, está no livro que Haddad lança pela Zahar: “O Terceiro Excluído – Contribuição para uma Antropologia Dialética”.

Nele, o petista reapresenta a história da humanidade a partir de um novo enfoque, procurando mostrar como avanços da biologia e da antropologia deveriam ser incorporados ao materialismo histórico, uma linha de pensamento que tem em Karl Marx (1818-1883) seu intelectual mais célebre.

Como fica claro desde o título, trata-se de obra acadêmica recheada de termos técnicos que provavelmente se revelarão uma barreira para boa parte dos potenciais leitores.

Até porque Haddad, que é professor de ciência política da USP, dedica um capítulo à biologia, outro à antropologia e o terceiro à linguística, costurando os três com referências de economia, história, sociologia e filosofia. Ao todo, 161 pensadores são mencionados, e é difícil imaginar que alguém estará familiarizado com todos.

Em entrevista à Folha, Haddad não se diz preocupado com a possibilidade de muita gente se assustar com o formato do livro, que a princípio seria uma tese de livre-docência na USP.

“Meu livro é ciência, não literatura. E se debruçar sobre a ciência é tarefa que exige esforço”, diz o ex-prefeito. “Além disso, estamos vivendo uma dramática crise socioambiental para a qual não haverá respostas fáceis.”

O petista também diz que é da tradição brasileira atualizar o debate acadêmico local com o que vem sendo produzido no resto do mundo.

“Acabei me estendendo na apresentação de alguns autores por ter a certeza de que poderia prestar um serviço para o leitor”, afirma Haddad. “Sobretudo para aquela parte da juventude que quer transformar o mundo, eu entendo que isso pode ser proveitoso.”

Quebrará a cara, porém, quem comprar o livro pensando que Haddad apresenta soluções para as crises contemporâneas. Ele não faz isso, embora sua maneira de recontar a história dê pistas sobre um plano de ação política.

Uma delas é que o desenvolvimento nacional não tem relação necessária com o debate sobre as soluções (ou emancipação, no jargão). Um país pode enriquecer e melhorar sua posição no ranking das nações sem que isso traga qualquer melhoria para os problemas centrais da humanidade.

A outra, conectada à primeira, é que os desafios só podem ser enfrentados com respostas supranacionais, seja na economia, seja na ecologia. Ou seja, não adianta cada país fazer a lição de casa sem pensar em uma ação conjunta de toda a espécie humana.

Mas esses são apenas possíveis desdobramentos de “O Terceiro Excluído”, pois o foco da obra está em fazer um novo diagnóstico de velhos problemas.

E bota velho nisso, porque Haddad retoma as origens da espécie humana e o surgimento da cultura para propor uma perspectiva que ele considera ausente tanto na antropologia quanto na tradição do materialismo histórico.

De um lado, ele sustenta que a antropologia, cada vez mais influenciada pela biologia, tem sido dominada por um pensamento que reduz o ser humano ao seu código genético.

Para Haddad, essa maneira de enxergar perde de vista o que a humanidade tem de específico em relação aos demais seres vivos, que é a cultura. Além disso, é uma visão incapaz de perceber que os seres humanos, diferentemente dos demais organismos, convive com a contradição.

Enfatizando essas diferenças, Haddad aproveita o neologismo “revoluir” no lugar de “evoluir” ao tratar da evolução (ou revolução) da cultura.

Quanto ao materialismo histórico, o ex-prefeito observa que, na época de Marx, a antropologia estava nos seus primórdios. Assim, muito do que se descobriu depois precisa ser incorporado a essa linha de pensamento.

Uma dessas teorias recentes é que a relação entre sujeito e objeto não acompanha a humanidade desde sempre. Isto é, houve um momento da história em que os seres humanos não tinham a capacidade de se perceberem como sujeitos diferentes dos objetos (como uma árvore, uma pedra, um animal).

De acordo com Haddad, essa relação entre sujeito e objeto, contudo, não começou entre o ser humano e a natureza, e sim entre um ser humano e outro –um outro que passou a ser visto como objeto, isto é, como se não fosse humano, apesar de ser humano.

Teria sido essa maneira de ver o outro como um objeto que permitiu a escravidão e os genocídios, por exemplo.

Em “O Terceiro Excluído”, essa relação com o outro –em geral um estrangeiro, visto como se fosse de outra espécie— aparece como um dos motores da história, ao lado da luta de classes.

Daí, por sinal, o título do livro. “O terceiro excluído” é o nome de uma das leis do pensamento da lógica clássica, segundo a qual uma coisa não pode ser e não ser (ou estar e não estar) ao mesmo tempo. É uma lei que bane a contradição.

Avanços da lógica no século 20 botaram essa lei em xeque, mas antes disso a linha de pensamento conhecida como dialética já indicava que a contradição não é necessariamente uma falha do pensamento, e sim a maneira certa de pensar certos fenômenos.

Haddad, por seu turno, quer mostrar que a antropologia é muito mais pobre sem levar em conta a contradição inerente ao ser humano –ou seja, é mais pobre sem o “terceiro excluído”.

Talvez mais importante, ele sugere que as soluções para os problemas atuais da humanidade passam por aceitar o outro como um igual, por mais diferente que esse outro seja.

É uma proposta de incluir esse “terceiro excluído” que é visto como objeto inumano, embora seja humano. De acordo com ele, a abordagem vale para qualquer forma de objetificação: por motivos nacionais, religiosos, de gênero, de raça etc.

“É um exercício permanente de aceitar esse outro como alguém como você”, diz Haddad.

Folha