Livro chama gestão Bolsonaro de “empresa de demolição”

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Foto: Reprodução

Em março de 2019, num jantar com lideranças conservadoras, em Washington, o presidente Jair Bolsonaro (PL) disse uma frase que marcou o início do seu governo: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”. Foi a partir dessa declaração do presidente que a historiadora Heloisa Starling, o cientista político Miguel Lago e o filósofo Newton Bignotto, passaram a buscar interpretações sobre o movimento político que assumiu o poder após as eleições de 2018.

Após passarem o último ano trocando impressões sobre a falta de projeto para o país do bolsonarismo, os três publicam agora o resultado dessas trocas no livro “Linguagem da destruição” (Companhia das Letras) que será lançado no Rio de Janeiro nesta quinta-feira. Em entrevista ao GLOBO, eles definem a gestão de Bolsonaro como uma “empresa de demolição” e afirmam que seu seu governo representa uma ameaça à democracia brasileira.

No livro, vocês partem da ideia de que o plano de poder de Bolsonaro tem como único norte a destruição. Podem explicar?

Heloísa Starling: Quando Bolsonaro disse que não tinha intenção de construir, mas “desconstruir muita coisa” me dei conta de que havia uma diferença brutal entre ele e a ditadura militar. Eles tinham um projeto de Brasil, de futuro. No caso do Bolsonaro, o projeto é destruir.

Newton Bignotto: Não criamos algo, ele próprio que anuncia isso. Ele de fato tem como objeto de ação demolir a democracia, a república e as suas instituições. Se a gente observar um tema que é muito sensível hoje no mundo, que é o meio ambiente, não vemos ao longo de três anos uma ação construtiva pra elencar.

Miguel Lago: Ele é antidemocrático e anti estado administrativo. Para o Bolsonaro, qualquer acordo coletivo que exerça controle sobre a atividade individual deve ser combatido. Isso tem uma força eleitoral de permitir a toda pessoa exercer aquele pequeno poder. Sempre tem alguém pra oprimir em algum lugar, sobretudo quando você é homem. O que o Bolsonaro está dizendo é “vá em frente”. Não tem freio.

Há algum paralelo histórico para o bolsonarismo?

Heloísa Starling: Nós nunca tivemos no Brasil um presidente reacionário, no sentido do movimento político, como Bolsonaro. O reacionário quer voltar para um passado fictício. O que chamam de negacionismo do Bolsonaro tem uma concepção de história falsa. Olha como ele e o Braga Netto falam sobre (o golpe militar de) 1964: é uma utopia regressiva.

Essa ideologia vem de sua formação no Exército?

Heloísa Starling: Bolsonaro é o resultado do reacionarismo do oficialato intermediário que formou aquilo que os historiadores chamam de linha-dura. Além de matrizes nazistas e integralistas. Aquilo que a linha dura sempre sonhou, ele conseguiu.

Newton fala dele ser adepto do “complotismo”, essa paranoia constante com uso de teorias da conspiração para mobilizar suas bases.

Newton Bignotto: O complotismo é como um bode expiatório, que galvaniza a atenção daquela comunidade que você visa persuadir. É uma maneira de estruturar uma visão do mundo presente em governos populistas desde o século XIX pelo menos. Ele tem uma vantagem: como opera fora da realidade, pode ver lógicas causais em fenômenos altamente complexos.

Miguel Lago: Dizem que o complô vai até Darwin, essa história de que o “homem veio dos macacos” (risos). Brincadeira à parte, eu acho Bolsonaro revolucionário no sentido de uma ruptura muito forte com a nossa cultura política. Como Heloísa estava dizendo, ele não tem nada a ver com a ditadura dos generais. De Dom Pedro II, passando pelos militares até Temer, vemos sempre esse discurso de progresso, modernidade, ainda que hipócrita às vezes. O Bolsonaro parou com isso, não tem mais discurso de progresso.

O sucesso dele está conectado à ascensão da extrema direita mundial?

Newton Bignotto: Acho que Bolsonaro está muito mais sintonizado com o mundo atual. Ele capturou algo do mundo contemporâneo que é a figura do indivíduo como centro absoluto da vida. Essa horizontalização nos joga numa solidão e pesa pra fatia mais pobre da população. O estado supostamente deveria dar direitos, mas as pessoas sentem que o estado não lhe dá a menor bola.

Heloísa Starling: Eu acho que você deveria publicar isso Newton. Bom né, Miguel?

Miguel Lago: Eu concordo com o Newton. Tem algo muito mais profundo que tem a ver com a sociedade atomizada. Bolsonaro é anti qualquer forma de construção coletiva que possa existir. Inclusive de movimentos sociais, de regras sociais. É bem como uma empresa de demolição geral mesmo.

A forma como ele se expressa, com ataques e embates constantes, é uma estratégia de comunicação?

Miguel Lago: Bolsonaro se elegeu como um grande influencer digital. Suas ações eram como uma maneira de produzir conteúdo pras redes sociais. É como se a vida real e a virtual virasse um estúdio, um grande BBB, da mídia social. Mas no último ano ele mudou muito, em algum lugar ele foi domesticado pelo Centrão.

As ameaças constantes contra instituições como o STF e a imprensa também fazem parte desse plano de demolição?

Newton Bignotto: Essa ameaça é eficaz pois o Brasil tem história interna de golpes de estado. Ela diz algo da realidade para quem ameaça. Você desvelar esse interesse já fragiliza a possibilidade porque a primeira etapa de um golpe é manter ele em segredo. Agora, isso não diminui a eficácia da ameaça porque ela é credível.

Heloísa Starling: No 7 de setembro passado ele tentou né.

Newton Bignotto: Ele cumpriu a função do golpe de estado que é mais importante pra ele: a ameaça do uso da força. Não está bem preparado esse golpe, mas o uso retórico é convincente e tem impactado continuamente a nossa vida política nos últimos quatro anos.

E como um governo sem projeto de país e após tantas crises vai se apresentar para disputar a reeleição?

Heloísa Starling: Acredito que Bolsonaro vai voltar a mobilizar a questão do passado. Ele atrasa o relógio da História, pois a única solução que tem é voltar ao que nunca existiu.

Miguel Lago: Acho que ele vai seguir se apresentando como antissistema, mas a aliança com o Centrão vai ser um grande problema — menos pro eleitorado cativo dele que normaliza qualquer coisa. Agora, ele deixou de ser tão incendiário, deixou de ter ministros como Weintraub, Salles, Ernesto Araújo que cumpriam um papel importante dentro dessa estratégia de radicalização.

O Globo