Afluência de brasileiros já muda costumes em Portugal

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Foto: Jose Sena Goulao/EPA/EFE

Primeiro, Portugal fez o Brasil, transplantando para a vasta colônia habitada por índios os pioneiros brancos desbravadores e com eles a língua, os costumes, a comida, o jeito de se vestir, as instituições públicas e até o desapego ao banho predominante nas terras d’além-­mar. Levas e levas de portugueses se instalaram aqui, sendo a mais volumosa a do início do século XX, quando o Brasil abriu as portas a imigrantes e a corrida de lusitanos fez a comunidade chegar a 1 milhão de indivíduos. Nos anos 1950, milhares de portugueses voltaram a afluir, aproveitando mudanças na lei que facilitaram sua entrada num momento em que escapavam da crise europeia no pós-guerra e da perseguição do ditador Oliveira Salazar. Agora, dá-se o inverso: é o Brasil que faz Portugal.

Fruto de cinco movimentos distintos de brasileiros na direção da antiga potência colonial ocorridos nos últimos cinquenta anos — o mais numeroso deles justamente nos últimos meses —, uma onda de transformações está sacudindo a sociedade portuguesa e incutindo nela uma maneira de viver, de falar, de lidar com as redes sociais e de morar com nítido sotaque dos trópicos. “A absorção de hábitos e do jeito dos brasileiros nunca foi tão intensa. O que começou com a influência de livros, novelas e música tomou a forma de um impacto maciço em todos os segmentos da vida”, observa o brasileiro Victor Barros, professor de sistemas de informação na Universidade do Minho, em Guimarães, no norte de Portugal e próximo a Braga — ou Braguil, como a cidade é chamada, de tanta gente do Brasil que foi parar lá.

O número de brasileiros que se transferiram legalmente para Portugal atingiu em março o recorde de 211 958 (contando-se os ilegais, calcula-se que passe de 400 000) e as reverberações dessa convivência são sentidas em toda parte — às vezes, em altíssimo e bom som. Depois de dois adiamentos por causa da pandemia, a nona edição do Rock in Rio Lisboa, nos fins de semana de 18 e 19 e 25 e 26 de junho, voltou a chacoalhar a capital lusitana com as características que mudaram de vez o jeito de fazer shows em Portugal — neste ano, os destaques nos sete palcos são o furacão Anitta e atrações internacionais como Black Eyed Peas, A-ha e o rapper Post Malone. Quando o primeiro Rock in Rio baixou em solo português, em 2004, o país tinha cerca de 100 festivais de música, a maioria voltada a um estilo e público específicos, e apenas cinco de grande porte. Hoje são 287, boa parte atraindo milhares de pessoas. “Foi um marco e obrigou o mercado a se mexer, inaugurando uma forma mais profissional de trabalhar e engajar patrocinadores”, avalia Ricardo Bramão, presidente da Associação Portuguesa de Festivais de Música. E tome MPB, sertanejo e funk agitando a pátria do fado.

O pontapé inicial da revolução dos costumes em Portugal foi a estreia da pioneira Gabriela, em 1977. De lá para cá, a TV nunca mais deixou de exibir alguma novela brasileira (além das muitas que passaram a ser produzidas lá), com efeitos variados — o primeiro deles, a antecipação do horário de jantar das famílias. O choque de brasilidade cresceu exponencialmente nos últimos tempos graças ao convívio com as legiões de imigrantes e à disseminação na terrinha dos canais brasileiros de YouTube. Não faltam pais preocupados com o vocabulário que a meninada aprende com Luccas Neto, youtuber de tremendo sucesso no país, onde lota casas de shows e contabiliza milhões de seguidores. Um deles é a portuguesinha Maria Carlota, 9 anos, que vira e mexe solta um “Quero encher o bucho” e cumprimenta com “Oi, gente”. “Ela está usando várias expressões brasileiras. Não gosto muito, mas não vejo problema, desde que saiba distinguir onde tem liberdade para falar assim e não passe a escrever dessa forma, considerada errada na escola”, diz a mãe, Catarina Cardoso.

São comuns os relatos de discriminação nos colégios de quem fala “abrasileirado”, e recentemente ensaiou-se um cancelamento de Neto, de seu irmão Felipe Neto, de Rafa, Luiz e outros influenciadores infantis, que não progrediu. A educadora Vania Correia, diretora do Colégio Semear, em Braga, que tem 50% de brasileiros em seu quadro de funcionários, considera o processo irreversível. “As crianças menores são as que mais repetem o que ouvem. Acredito que, se esse fluxo seguir adiante, a língua sofrerá mudanças reais nos próximos anos”, afirma. Ciosos de sua cultura, muitos portugueses se ressentem do que chamam de “colonização reversa”. Não só portugueses, aliás. Moradora de Portugal desde 2009, a linguista e lexicógrafa mineira Débora Ribeiro, 37 anos, testemunha as mudanças que vêm ocorrendo na última flor do Lácio. “Cada vez mais gente se expressa com o verbo no gerúndio, algo que não existe aqui, e o pronome você, antes pouco usado, está em anúncios na TV e em out­doors”, observa ela. Junto com a mudança da língua, Débora vivencia a disseminação de certos produtos. Hoje, por exemplo, encontra facilmente pão de queijo no Porto, onde vive.

A culinária é um ponto de resistência no abrasileiramento de Portugal, mas, mesmo assim, alguns quitutes conseguem derrubar a barreira — caso do “bolinho brasileiro”, como a coxinha é conhecida. “O português, de início, não quer saber de novidades, mas cerca de 40% da minha clientela é gente daqui que se rendeu aos nossos pratos”, conta a brasileira Edna Costa, que administra o Edna’s Boteco, em Braga, desde 2016. Em matéria de popularidade alimentícia, porém, ninguém ganha do açaí, que transformou Portugal em um dos dez países que mais importam o fruto amazônico do Brasil. “Quando experimentei, achei estranho, mas passou a ser o meu alimento preferido”, conta o português Miguel Martins, 21 anos, apresentado à iguaria pela namorada brasileira. O brigadeiro conseguiu abrir caminho entre a infinidade de pastéis de nata e doces à base de ovos típicos do país — empreitada em que é ajudado pela proliferação das casas de festas infantis, outra contribuição do Brasil abraçada com entusiasmo pelas famílias de alto poder aquisitivo, que agora cantam o Parabéns em ambientes com ares de superprodução artística.

Os registros do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de Portugal mostram que o número de brasileiros em situação regular no país mais do que dobrou nos últimos dez anos (veja o quadro), até alcançar seu maior número nesta que é a quinta leva de imigração, turbinada pela abertura das fronteiras pós-pandemia e pelo desânimo com a situação do Brasil e integrada por jovens qualificados e aposentados com elevado poder aquisitivo. Consequência disso é serem os brasileiros a segunda fatia de estrangeiros que mais compra imóveis em Lisboa (atrás dos chineses), o que veio adicionar novos espaços às edificações portuguesas: moradias de alto nível, hoje em dia, são casas com varanda e piscina, de preferência em condomínios fechados, e apartamentos com espaço gourmet. “De uns três, quatro anos para cá, começamos a identificar um movimento de locais em busca de imóveis que tenham áreas de convívio”, confirma a portuguesa Cristina Costa, da Consultoria Decisões e Soluções, em Braga.

Os exemplos se multiplicam, alcançando até a forma de mandar mensagens pelo WhatsApp — com os brasileiros, os formalíssimos portugueses estão aprendendo a abreviar e usar emojis. “Aos poucos, estou cada vez menos formal nas conversas em família ou entre amigos”, atesta o roteirista Miguel Afonso, de 28 anos, que é fã dos memes inventados no Brasil e não abre mão de stickers. “Aprendi que é possível flertar usando só stickers”, brinca.

O Carnaval português, em que o máximo de baticundum que se ouvia vinha das TVs mostrando o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro, agora estremece com a passagem de foliões portugueses misturados a brasileiros sambando em blocos de rua nas grandes cidades, como o Bué Tolo (“bué” quer dizer muito e o bloco se inspira no carioca Cordão do Boi Tolo), que sai em Lisboa. Até o domingo, por influência dos brasileiros, mudou. “Antes era um dia parado, de preparação para a segunda-feira. Agora tem umas 100 rodas de samba só em Lisboa. Difícil é acordar no dia seguinte”, diverte-se o fã português Eduardo Marques Lopes. Em meio a tudo isso, e entre uma aula de jiu-­jítsu aqui e uma sessão de capoeira ali, o Brasil vai, ora pois, descobrindo e mudando Portugal.

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