Battisti ataca líderes latino-americanos que o ajudaram
Foto: Alberto Pizzoli/AFP
Na correspondência da reportagem com Cesare Battisti, poucos nomes provocaram tanto a sua indignação quanto o de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia e outrora um dos líderes da esquerda na América Latina.
“Evo é um traidor e covarde”, afirmou Battisti, em referência ao político que entregou o fugitivo para os italianos.
A fuga do ex-terrorista italiano para a Bolívia se deu após a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, no final de outubro de 2018.
Nos seus últimos dias de liberdade em Santa Cruz de la Sierra, entre o final daquele ano e o início de 2019, Battisti afirmou ter sido recepcionado no país por um representante do MAS (Movimento ao Socialismo), partido de Evo Morales.
Contou, ainda, ter sido instalado naquela cidade, uma das mais desenvolvidas da Bolívia, num “alojamento dentro de um centro de monitoramento informatizado, montado pelo serviço de inteligência boliviano para espiar a oposição”.
Aos 67 anos e com poucas chances de aliviar –no curto prazo– a pena de prisão perpétua, Battisti concedeu uma entrevista pela primeira vez desde que voltou à Itália, há três anos e meio. A Folha a publica com exclusividade.
A série de correspondências se iniciou em abril de 2021 e continua até os dias atuais.
Ele fala sobre seus últimos momentos no Brasil, a fuga e prisão na Bolívia e o retorno ao território italiano. Houve uma tentativa de entrevistá-lo pessoalmente, mas o encontro não foi autorizado pela penitenciária. Esta é a segunda de três reportagens sobre a entrevista de Battisti.
Sobre a Bolívia, Battisti disse ter percebido que alguma coisa não ia bem quando houve um desencontro entre as autoridades locais: o pedido de refúgio tinha sido apresentado por ele algumas semanas depois de entrar na Bolívia, mas a resposta que recebeu foi de que o requerimento deveria ter sido feito logo no ingresso.
O processo, como temia, não andou. Detido, ele foi entregue a policiais italianos e formalmente expulso do país.
Battisti disse que integrantes do PT e de organizações sociais como MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP) fizeram contato com o presidente boliviano em 2017, quando o governo de Michel Temer dava sinais de que iria reverter o refúgio no Brasil, e que Evo Morales teria garantido proteção.
A informação foi confirmada por Magno de Carvalho, do Sintusp e um dos principais amigos do italiano na sua temporada brasileira. Era de Magno a casa em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, onde Battisti passou uma temporada.
O italiano credita a Evo Morales a sua ida para a Bolívia e também o responsabiliza pelo que chamou de “sequestro”, referindo-se à sua prisão.
Como foi expulso da Bolívia, e não extraditado do Brasil, o processo de extradição julgado pelo STF em 2010 –determinando que, se voltasse para a Itália, ficasse no máximo 30 anos preso– perdeu o efeito.
A sua defesa até tentou levá-lo em consideração na Itália, para tentar reduzir a pena, mas o Judiciário italiano negou.
Trata-se, na visão do preso, de mais uma influência direta de Evo Morales na sua condição.
“Ele poderia ao menos me fazer ser preso, eu iria responder na Justiça e a extradição seria negada por prescrição e delito político. Evo se vendeu sem escrúpulo. Um gesto desprezível de um homem indigno que revelou toda sua obscenidade meses depois, ao abandonar o próprio povo aos golpistas para fugir.”
Ele afirma que a alternativa à Bolívia era a Nicarágua de Daniel Ortega, país que havia visitado nos anos 1980, no período em que vivia no México. Mas diz ter descartado essa opção por entender que o regime de Ortega transformou o país numa ditadura.
A confissão de Battisti (de participação em crimes que ele sempre negou nos anos de refúgio) provocou efeitos na esquerda brasileira, com muitos dos antigos apoiadores distanciando-se dele, como fez o ex-presidente Lula.
Antes, amplos setores da esquerda, como PT, PSOL, e PSTU, e também movimentos sociais, defenderam sua liberdade.
Após admitir culpa, Battisti tentou justificar-se com um dos políticos brasileiros mais ativos na sua defesa: o ex-senador Eduardo Suplicy (PT).
O italiano ressaltou numa mensagem enviada a Suplicy que, se insistisse na inocência, repetiria aqueles que fabricam monstros para encobrir a verdade histórica. “O que lhe interessa é saber se ajudou um culpado ou um inocente. E nisso eu não posso lhe garantir clara satisfação”.
Ao longo de mais de um ano de correspondência, ele contou que muitos amigos, inclusive brasileiros, apoiaram ele mesmo sabendo que, no fundo, poderia ser culpado pelos crimes na Itália.
“Sempre professei minha inocência e qualquer um era livre de interpretar como melhor acreditava, mas para muitos esses problemas não se colocavam, simplesmente defendiam a ideologia da época dos fatos. Fui apoiado por uma pluralidade de razões, seja por me declarar inocente, seja porque muitos países não concebiam uma condenação à revelia, seja porque eu dava a ideia de combatente da liberdade.”
O ex-deputado federal Fernando Gabeira, hoje comentarista da GloboNews, foi o primeiro contato de Battisti —conta o italiano— no Brasil, em 2004, quando desembarcou fugindo da França. O afastamento entre eles ocorreu muito antes de seu retorno à Itália.
Battisti diz ter por Gabeira um sentimento semelhante ao que nutre pelo ex-presidente Lula —o ajudou no início, mas o descartou depois.
“Quando Gabeira foi candidato no Rio em uma coalizão de direita, aconselharam ele a me renegar (a mesma história de Lula). Eu lamentava por ele não ter me aconselhado bem. Enquanto eu queria me entregar às autoridades para pedir refúgio, ele dizia que não era o caso e assim eu fiquei semiclandestino de 2004 a 2007. Acredito que no passado Gabeira foi um bom político e um amigo, mas ele também foi devorado pelo jogo do poder”, escreveu.
Gabeira diz que a história contada pelo italiano não “coincide com os fatos”. Ele disputou o Governo do Rio pelo PV (com apoio do DEM e do PSDB) em 2010 contra Sérgio Cabral (apoiado pelo PT) e afirmou que a sua coalizão não era de direita.
“Battisti já disse que o iludi dizendo que o governo lhe daria asilo fácil. Agora diz que o iludi demovendo-o de se entregar”, disse Gabeira, ao discordar também da avaliação de Battisti sobre o que seria uma candidatura de direita.
Nas cartas, o italiano utiliza expressões como “bode expiatório” e “vingança de Estado” para referir ao seu caso. E quase sempre fala de si mesmo na terceira pessoa, mais ou menos como Edson Arantes do Nascimento ao falar de Pelé.
“Não reconheço a imagem que pintaram de mim, esse ser não sou eu”, justificou.
Cesare Battisti nunca teve relevância na esquerda extremista italiana, mas sua longa fuga o transformou em personagem central daqueles anos.
O ex-terrorista Arrigo Cavallina, 76 anos, fundador do PAC e que cumpriu 12 anos de pena (condenado por um dos homicídios com participação de Battisti), acha que há sim uma “vingança do Estado” contra o ex-colega. Diz que contribuiu a postura arrogante e desafiadora dele nos longos anos de fuga.
“Ele criou um personagem, um mito, para se proteger. Battisti não poderia admitir esses crimes como refugiado. Entendo que fez isso para sobreviver”, disse.
Cavallina o conheceu no presídio de Udine em 1977 e pouco depois o recrutou para o PAC. Battisti estava preso por crimes comuns —ele começou a delinquir com 17 ou 18 anos— e reconhece que Cavallina “afinou certos aspectos da minha revolta”.
A Itália tinha à época um regime democrático que adotou instrumentos rígidos para enfrentar atentados terroristas como o sequestro e o assassinato do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, em 1978, ação realizada pelas Brigadas Vermelhas, maior grupo terrorista da esquerda.
Mas nem de longe era uma ditadura como as dos países latino-americanos, onde grupos guerrilheiros pegaram em armas para tentar derrubar os governos autoritários.
A comparação entre essas duas realidades (frequente ainda hoje no Brasil) persiste e leva muitos a considerarem Battisti um militante à la guerrilha latino-americana, visão que não é correta.
Atuante numa associação que se dedica a penas alternativas e à recuperação social de presos, Cavallina conta que os processos sobre os anos de chumbos –inclusive os de Battisti– trazem sentenças que refletem fielmente, na “imensa maioria”, o que aconteceu.
Ele defende o cumprimento de uma pena, mas questiona a prisão perpétua. “Ele poderia cumprir uma pena alternativa, talvez fazendo algo em benefício das vítimas e do Estado. Da forma como está, paga-se um mal contra outro mal.”
Battisti foi confrontado com a opinião de Cavallina sobre a arrogância. Sua resposta: “Suponho que a arrogância da qual ele fala tenha relação com minha insistente defesa do direito ao refúgio e às denúncias contra a perseguição do Estado. Claro que, exausto de tanto assédio e despreparado, posso haver externado propósitos excessivos. De toda forma, pago meus erros, eles não caem sobre os outros”.