Bolsonaro espalhou 1 milhão de armas pelo país

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Foto: Divulgação/Sindifisco Nacional de Brasília

Desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a Presidência, em 2019, foram registradas mais de 1 milhão de novas armas particulares no Brasil, segundo dados da Polícia Federal e do Exército obtidos pelos institutos Sou da Paz e Igarapé por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).

Até novembro de 2021 havia no país um total de 2,3 milhões de armas registradas (os institutos ainda não obtiveram números de 2022). Trata-se de um aumento de 78% em relação a 2018, último ano da gestão de Michel Temer (MDB), quando havia 1,3 milhão de armas contabilizadas.

Uma parcela importante dessa alta se deve a armamento comprado por pessoas comuns e por servidores civis, como policiais e agentes federais. Nesse grupo, a quantidade de armas mais que dobrou: saltou de 344 mil para 810 mil no período.

Caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CACs, também dobraram a quantidade de armas em suas mãos: passaram de 350 mil há quatro anos para 794 mil em novembro de 2021. A quantidade de pessoas que se registraram como CACs quase triplicou em período semelhante: eram 167 mil em julho 2019 e, em outubro de 2021, somaram 491 mil.

As armas que as polícias fornecem para o trabalho dos policiais, os armamentos institucionais, não estão incluídas na pesquisa. Também não estão incluídas as que estão em empresas de segurança e nos estoques das lojas e fábricas.

Nas lojas, as vendas de munições também tiveram crescimento. O número de projéteis comercializados no país dobrou entre a gestão de Temer e o terceiro ano do governo de Bolsonaro. Foram 124 milhões de munições vendidas no passado apenas para CACs e pessoas físicas no varejo. Em novembro de 2021, foram 297 milhões.

Para a gerente de projetos do Sou da Paz, Natália Pollachi, os números revelam que as mudanças nas regras implantadas a partir do governo Bolsonaro, de 2019 para cá, foram efetivas. “Não é só desburocratizar. Houve facilitação e incentivo”, afirmou.

O Exército afirmou que faz fiscalizações e que, havendo indícios de crime, a polícia é avisada o registro do CAC é cancelado (veja mais abaixo). O Movimento Pró-Armas e a Aniam (Associação Nacional das Indústrias de Armas) disseram que não haveria tempo para seus porta-vozes prestarem informações. A Polícia Federal, o Ministério da Justiça e a Presidência da República não prestaram esclarecimentos.

Armas legais têm sido desviadas para criminosos cometerem ações de alta periculosidade no país. Atualmente, até armas de alto calibre e uso antes restrito podem ser vendidas a cidadãos. No mês passado, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul deflagrou a Operação Pavão, para desarticular uma quadrilha que assaltou R$ 4 milhões de um carro forte usando fuzis.

As investigações encontraram os fornecedores de armas na empreitada criminosa, como um fuzil Imbel calibre 762. “A arma de fogo era de propriedade de um morador da cidade de Getúlio Vargas, tendo ele adquirido, não somente ela, mas ao menos outras três pistolas, por meio de certificado de colecionador e de atirador expedido pelo Exército Brasileiro, meses antes”, informou comunicado da polícia. Outras quatro pessoas ajudaram a fornecer armamentos.

“O investigado, recebeu valores, tanto para a aquisição dessas armas, quanto para a entrega delas posteriormente”, disse o delegado João Paulo Abreu ao UOL. Para ele, “não foi caso de falha na fiscalização, não foi uma ‘fatalidade'” — para ele, se trata de “estratégia” criminosa.

A aquisição de armas de fogo, de forma lícita, por meio de certificados de registro de colecionador e de atirador, obtidos, perante o Exército Brasileiro, tem sido uma estratégia usada por grupos criminosos, para obter instrumentos para ações criminosas”João Paulo Abreu, delegado da Polícia Civil do Rio Grande do Sul

Não foi o primeiro caso. Em janeiro, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio fizeram uma operação em que apreenderam 26 fuzis fornecidos por um CAC a traficantes do Comando Vermelho. O armamento foi adquirido legalmente.

Em ambos os casos, no Rio Grande do Sul e no Rio, foi realizada a apreensão dos armamentos comprados legalmente.

O Exército disse ao UOL que o controle das armas começa assim que o cidadão faz o registro. A documentação deve comprovar itens como “idoneidade, capacidade psicológica e técnica para utilizar um armamento”. Os militares afirmam que “seguem normas rígidas e objetivas voltadas para CAC na concessão de registros e utilização de produtos controlados”.

O cumprimento dessas normas é verificado por meio de operações de fiscalização e inspeções periódicas”Nota do Exército

“Havendo indício de crime é comunicado à Polícia Judiciária, sendo o registro imediatamente cancelado por perda da idoneidade do suspeito”, diz o Exército.

No ano passado, foi realizada a menor apreensão de armamento pela PF nos últimos nove anos — foram 549 armas, um terço dos 1.702 itens apreendidos em 2020.

A maior quantidade apreendida foi em 2014 — 2.387 armas. Os números devem ser vistos com cautela, porque existem apreensões feitas pelas polícias militares, guardas municipais e mesmo pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) que não entram no cálculo da PF, mas das 27 polícias civis do Brasil.

No ano passado, por exemplo, a PRF apreendeu 2.113 armas segundo um balanço divulgado pela corporação. Em 2020, foram 2.229 equipamentos, de acordo com outro comunicado. As apreensões feitas pela PRF ora são contabilizadas pela PF, ora pela Polícia Civil. O mesmo acontece com as polícias militares e guardas municipais.

Sob anonimato, um policial afirmou ao UOL que os criminosos correm mais risco contrabandeando armas do exterior do que comprando no Brasil. Nos últimos meses, ele observou pelo menos 20 casos em que traficantes, assaltantes e outros tipos de bandidos adquiriram armamentos por meio de namoradas, esposas e vizinhos, que se registram como CAC no Exército.

Também reservadamente, outro policial destacou que um cidadão não pode ter um fuzil mesmo que apresente à PF uma declaração de necessidade. No entanto, basta se cadastrar como CAC no Exército para que esses obstáculos sejam vencidos, de acordo com as novas regras em vigor.

Natália Pollachi, do Sou da Paz, diz que é importante não criminalizar a atividade de CAC porque muitas pessoas se dedicam ao tiro esportivo de forma responsável. Para ela, o estranhamento é a quantidade de armas que hoje é destinada aos atiradores. Antes, variava de quatro a 16, dependendo do nível técnico do atleta.

Hoje, são 60 armas, incluindo 30 de uso restrito, como os fuzis semiautomáticos.

Quando uma pessoa comum acabou de se registrar para praticar supostamente o tiro esportivo, passar a poder comprar 30 fuzis de uma vez, isso não tem relação com a atividade de tiro esportivo”Natália Pollachi, gerente do Instituto Sou da Paz

Apesar do aumento expressivo de registro de armas, o número de homicídios no Brasil vem caindo desde o governo de Michel Temer (MDB). Em 2019, foram 21,7 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. Houve 45.500 assassinatos. A redução foi de 22% em relação a 2018.

Em 2016, foram mais de 62.527 homicídios. Segundo Natália Pollachi, também é preciso ler os números com precaução. Ela destaca que a proporção de homicídios causados por armas de fogo subiu de 70% para 78%.

Desde o início do governo, o Ministério da Justiça tem dito que “a posse de arma é uma forma de garantir a legítima defesa” porque permite “se proteger individualmente em situações em que as forças policiais não estejam presentes”.

Em março, em Propriá (SE), Bolsonaro disse que as armas servem para garantir a democracia.

A arma de fogo, além de segurança para as famílias, é segurança para nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa democracia será preservada”Jair Bolsonaro, presidente da República

Em abril de 2020, o presidente declarou: “Quero que o povo se arme”.

Uma das medidas pedidas pelos CACs é desburocratizar o registro dos armamentos. Um dos líderes do movimento Pró-Armas, Marcos Pollon, divulgou que esteve com Bolsonaro numa reunião em 25 de maio, agenda que não consta na agenda do presidente. Segundo Pollon, o encontro tratou de “meios para agilizar os processos do Sigma e Sinarm”, os bancos de dados de armas.

Eles propuseram uma integração com cartórios e Ministério da Justiça para a base de dados do Exército, o Sigma. Para o banco da PF, a ideia seria usar “convênios com as secretarias de segurança dos estados para otimizar os processos via Polícia Civil”, de acordo com Pollon.

 

Para Natália, faz parte do processo democrático que um setor da economia, o mercado de armas, tenha reuniões com o governo. Mas ela acha “desproporcional” a quantidade de agendas e audiências que esse setor consegue com a Presidência e os ministros. “Há uma série de questões de conflito de interesses. Neste governo, o acesso que tem sido dado a essas categorias é muito desproporcional.”

O UOL procurou a Associação Nacional da Indústria de Armas (Aniam) e o Movimento Pró-armas por três dias. As assessorias das duas entidades disseram que seus presidentes, Salesio Nuhs e Marcos Pollon, respectivamente, não poderiam conceder entrevistas por problemas de agenda. Os esclarecimentos serão publicados se forem recebidos.

Uol