Culpar polarização é cumplicidade com crime

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Foto: Reprodução

O nome da vítima: Marcelo Arruda.

O nome do assassino: Jorge José da Rocha Guaranho

Qual o motivo do crime? Arruda era petista; Guaranho, bolsonarista.

Há um dado relevante: Arruda, dirigente do partido em Foz do Iguaçu, fazia uma festa de aniversário em ambiente fechado, para convidados. Guaranho, um agente penitenciário federal que tira fotos simulando arma com as mãos até debaixo d’água, não tolera um petista à sua volta. Ou resolve as coisas do seu jeito. Com arma de verdade.

Lideranças políticas e “analistas” tão isentos como a pistola que matou Arruda estão tentando o equilíbrio impossível, apontando e condenando o “extremismo”, a “radicalização”, a “polarização”. Trata-se de um abstracionismo moral, intelectual, politicamente covarde. Ou cúmplice.

O extremismo, como abstração, depende da existência de alguém, no mundo concreto, que seja extremista. A propósito: são abstratos todos os substantivos que derivam de adjetivos. A radicalização se materializa no indivíduo radical. E é preciso que exista o militante polar — do polo ideológico — para que a polarização ganhe concretude — que é, a propósito, expressão abstrata do concreto.

Quantos mortos ainda há por vir até que essa gente tome vergonha na cara — ou descambe de vez para a canalhice — e reconheça que inexistem dois polos disputando a eleição? Isto tem sido quase uma ladainha nos meus textos há praticamente um ano: Lula não é o oposto combinado de Bolsonaro porque este é um candidato de extrema-direita, e o petista não é de extrema-esquerda. Nota irônica em meio à tragédia: ainda trago na memória os dias em que as esquerdas diziam que Geraldo Alckmin, futuro vice na chapa do ex-presidente, pertencia ao Opus Dei. Nunca pertenceu. Mas a lembrança serve para ilustrar o “extremismo” de Lula, não é mesmo?

Na sexta, referindo-me à bomba caseira que explodiu em evento do PT no Rio e ao ataque ao carro do juiz Renato Borelli, escrevi neste espaço: “Podemos fingir que essas ocorrências não têm a menor importância ou tomá-las por aquilo que são: a consequência prática do estímulo à intolerância e ao “ataque dos cães”, para lembrar o Salmo 22 da Bíblia.”

Mas Bolsonaro é o culpado porque um dos fanáticos que o admiram resolveu matar um petista? Já afirmei aqui que a culpa pertence ao terreno do direito penal e da moral. A palavra “responsabilidade” é mais ampla e engloba também a política. Bolsonaro não puxou o gatilho. Mas cabe indagar se seu discurso não estimula tanto a formação de hordas como a atuação de lobos solitários — coisa que a turma do “nem-nem”, que pretende condenar abstrações, está ignorando.

Sim, é verdade: pode haver gente destrambelhada em quaisquer categorias, incluindo as ideológicas. Trato, neste texto, da responsabilidade política. As coisas que as lideranças relevantes de oposição ao bolsonarismo, incluindo Lula, têm dito em palanques e nas redes sociais estimulam a violência? Ou a resolução de conflitos à bala? Ou a eliminação do outro como premissa para que se realize o mundo de Deus na Terra? Ora, qual tem sido o discurso permanente de Bolsonaro?

Ele evocou os inimigos internos, que tratou como criminosos, até ao comentar o assassinato de Shinzo Abe, ex-primeiro-ministro do Japão. Relembro o que disse:

“É o preço por lutar pelo seu país. Muitas vezes, ou na maioria das vezes, o inimigo não está lá fora, está dentro da nossa pátria (…). O que não podemos admitir é que a traição venha de gente de dentro do país (…) ao tirar nossa liberdade, entregar nossas riquezas a gente de outras ideologias.”

Escrevi um artigo a respeito. O título: “Bolsonaro não reage à morte de Abe, mas fala de seu próprio rancor armado”.

Qual tem sido o recado permanente que Bolsonaro passa a seus seguidores? O Brasil estaria vivendo uma luta do “Bem contra o Mal”. Em um dos lados, o seu, haveria tudo o que a Terra e a cultura produziram de bom, de belo e de justo — isso certamente deve incluir os pastores ladrões do MEC e o Orçamento Secreto. Seus adversários encarnariam todas as mazelas do mundo. Sendo assim, pois, alguns de seus seguidores se sentem como que ungidos, empoderados mesmo, por suas palavras, que tomam como uma exortação. Ora, se é assim, então é preciso resolver as coisas nem que seja à bala.

Na sua “live” de quinta, diga-se, voltou a exaltar o armamentismo, e seu mantra é este: “Povo armado jamais será escravizado”. Temendo uma crise na campanha, agora que um aliado decidiu agir, o senador Flávio Bolsonaro afirmou:

“Defendemos a arma de fogo para legítima defesa, tanto para o bolsonarista quanto para o lulista. Se Lula fosse presidente, esse guarda municipal poderia estar desarmado e a tragédia seria muito maior”.

A fala é mentirosa. O tal lema nada tem a ver com autodefesa, mas com o uso político do trabuco. Bolsonaro é o primeiro presidente a pregar abertamente a luta armada. Nas barbas e cabelos tingidos de generais. A história de que Arruda poderia estar desarmado se Lula fosse presidente é só má-fé: a lei lhe faculta o porte de arma. Trata-se de mais um esforço, a exemplo do que fez seu pai, para culpar a vítima.

Ainda na quinta, o presidente fez a mais subversiva de todas as incitações em sua “live”. Ao repetir as mentiras sobre fraudes nas eleições de 2014 e 2018, incitou:

“Você sabe o que está em jogo. Você sabe como você deve se preparar não para um novo Capitólio — ninguém quer invadir nada –, mas nós sabemos o que temos de fazer antes das eleições (…). Eu acho que não preciso concluir aqui o que está na cabeça de cada um de nós e na minha também. Eu vou nas palavras do sr. ministro da Defesa que eleição é questão de segurança nacional, e o que nós queremos é transparência.”

Bolsonaro mobilizou uma massa de fanáticos com as suas mentiras. E sempre há aqueles que, dada a fala do líder, decidem resolver as coisas segundo o modo que entendem ser do gosto do seu guru — ou do seu “Mito”. E não é Bolsonaro a exaltar a pistola como instrumento de libertação?

Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa, está satisfeito com o rumo que estão tomando as coisas? Ele compartilhou no WhatsApp artigo de um general da reserva, Luís Eduardo Rocha, segundo quem a eventual vitória de Lula seria a ruína moral do país. Também eles consideram que pastores ladrões no MEC e Orçamento Secreto para comprar o Congresso são moralmente edificantes? Ou não se deve fazer tal pergunta para não desagradar aos tanques?

Bolsonaro disse certa feita que o golpe de 1964 deveria ter fuzilado uns 30 mil. Os neogolpistas já andaram fazendo as contas de quantos cadáveres pretendem juntar à montanha dos mais de 670 mil da Covid, nesse projeto para limpar a pátria dos esquerdistas, como prega nas redes sociais, diga-se, o assassino de Marcelo Arruda?

Nas redes sociais, o presidente tratou assim do assassinato de um pai de quatro filhos apenas por ser petista:

“Independente das apurações, republico essa mensagem de 2018: Dispensamos qualquer tipo de apoio de quem pratica violência contra opositores. A esse tipo de gente, peço que por coerência mude de lado e apoie a esquerda, que acumula um histórico inegável de episódios violentos. É o lado de lá que dá facada, que cospe, que destrói patrimônio, que solta rojão em cinegrafista, que protege terroristas internacionais, que desumaniza pessoas com rótulos e pede fogo nelas, que invade fazendas e mata animais, que empurra um senhor num caminhão em movimento”.

Não há nem sombra de solidariedade com a mulher e com os filhos da vítima.

Arruda foi assassinado por um dos partidários do presidente, que aponta o dedo contra “o lado de lá”.

E há, até na imprensa, os que estão empenhados em distribuir como culpados os substantivos abstratos.

Em certa medida, são ainda mais covardes do que os bolsonaristas.

Uol