Especialistas defendem impeachment de Bolsonaro

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Foto: Clauber Caetano/AFP

O presidente Jair Bolsonaro (PL) cometeu uma série de crimes na apresentação feita a embaixadores em Brasília nesta segunda-feira (18). As declarações, em tese, poderiam levar à cassação ou ao impeachment do mandatário, avaliam especialistas em direito ouvidos pela Folha.

Ao atacar novamente o sistema eleitoral, falando à rede estatal e usando as redes sociais para compartilhar suas declarações, o chefe do Executivo teria cometido abuso de poder, previsto pela lei complementar 64, de 1990, conhecida como lei das inelegibilidades.

Em evento oficial no qual convocou representantes estrangeiros, Bolsonaro proferiu diversas mentiras já desmentidas sobre as urnas. Ele ainda repetiu teorias da conspiração e desacreditou o sistema eleitoral, promoveu novas ameaças golpistas e atacou ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

O chefe do Executivo diz ter embasado sua apresentação em um inquérito da Polícia Federal sobre um suposto ataque hacker ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) durante as eleições de 2018.

Ele levantou suspeitas sobre a vulnerabilidade do sistema ao dizer que o hacker obteve a cópia de toda a base de dados do TSE, que o pleito de 2018 não foi transparente e que a eleição de 2020 não poderia ter acontecido sem a apuração completa da PF sobre o caso.

Disse que uma empresa privada faria a contagem de votos, e não a Justiça Eleitoral, e que “o próprio TSE disse que em 2018 número podem ter sido alterados”.

Todas as alegações já foram desmentidas pela Justiça Eleitoral, pela imprensa e por checadores de fatos há cerca de um ano, quando Bolsonaro fez uma live semelhante.

A advogada e professora de direito penal da USP Helena Regina Lobo da Costa explica que o abuso de poder político não é um crime, mas um ilicito eleitoral, que pode levar à cassação do registro ou diploma, multa, inelegibilidade, dentre outras sanções, mas, como não é um crime, não acarreta aplicação de pena de prisão.

Ela acrescenta que embora a lei não defina com detalhe o que é abuso de poder político, entendido como lesar princípios da administração pública, o texto é claro ao dizer que “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”.

“A meu ver, a reiteração de ataques ao Judiciário e ao processo eleitoral/democracia integram o abuso de poder político”, diz.

A punição, entretanto, dependeria do julgamento em plenário a ser feito pelos ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Neste caso, não caberia uma decisão liminar.

Por conta disso, a perspectiva de punição antes do pleito, marcado para o dia 2 de outubro, ou mesmo até o término do mandato de Bolsonaro, é improvável.

O advogado Ricardo Penteado, que coordenou campanhas jurídicas em todas as eleições presidenciais desde 2002, com atuação em partidos como PSDB, PSB e Rede, afirma que Bolsonaro cometeu um “rosário de ilícitos graves” na apresentação a embaixadores.

Além de citar a lei das inelegibilidades, ele considera ilícito o uso de todo aparato do cargo para uma finalidade eleitoral.

“O TSE tem jurisprudência para que esses atos, ainda que praticados antes do ato da candidatura, sejam enquadrados como abuso de poder político”, diz.

Penteado acrescenta que há margem para propaganda eleitoral antecipada, mesmo que não tenha ocorrido pedido expresso de voto. Isso porque houve uso da TV estatal para propaganda política, o que é vetado no artigo 36-B da Lei das Eleições.

Coordenador-geral da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e doutor em direito pela UFPR, Luiz Fernando Pereira compara o caso de Bolsonaro ao do ex-deputado estadual Fernando Francischini (União-PR), que teve o mandato cassado por, no dia do pleito de 2018, afirmar que houve fraude nas urnas a favor de Fernando Haddad (PT).

“Se fossemos tratar pela mesma régua que o TSE criou, diria que é difícil não dizer que os dois não mereçam ou não a mesma decisão. Se está certa ou não, no caso do Francischini, até tenho as minhas ressalvas, mas é a orientação do TSE”, afirma Pereira, que atuou na defesa da chapa do ex-presidente Lula nas eleições de 2018, cassada pela corte.

O advogado e especialista em direito eleitoral Alberto Rollo, discorda da interpretação de que seria possível punir Bolsonaro apenas com base nas declarações feitas nessa semana.

Para ele, o mandatário só pode vir a ser responsabilizado pela corte eleitoral se continuar a fazer ataques contra as urnas eletrônicas após o início da campanha.

“O Bolsonaro está falando no período de pré-campanha. Se juntar todas as vezes que ele falou contra o sistema antes da campanha, se ele continuar falando durante, aí o conjunto daria para falar da mesma régua, mas precisaria esperar isso acontecer”, diz.

Um processo sobre isso só pode ser apresentado a partir de 16 de agosto, quando começa oficialmente a campanha eleitoral.

Em 2019, o TSE cassou o mandato de senadora da Juíza Selma (Podemos-MT), por abuso de poder econômico por omitir da prestação de contas quantias expressivas usadas para pagar despesas eleitorais na pré-campanha.

Rollo discorda que o caso possa ser usado como referência, por se tratar de abuso de poder econômico. Para Helena Lobo (USP), os mesmos dispositivos legais regem os dois institutos, então a jurisprudência é válida.

Os especialistas também afirmam que os ataques feitos contra o TSE caracterizam crime de responsabilidade, previsto no artigo 4 da Lei do impeachment (Lei 1079/50), que prevê atos que atentem contra o “exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”.

“Ele ameaça, ataca e inviabiliza o livre exercício do poder judiciário eleitoral”, diz Vera Karam, professora de direito constitucional da UFPR.

“Não era necessária essa live para ensejar a abertura de um processo de impeachment. Ele reitera condutas suficientes, do meu ponto de vista, para crime de responsabilidade.”

A professora de direito constitucional da UFRJ Carolina Cyrillo tem a mesma interpretação. “Ele está tentando frustrar a eleição, de certa forma, ou botar em dúvida, portanto, de forma reflexa, violando os direitos políticos como um todo”.

​Bruno Salles Pereira Ribeiro, diretor e 1º secretário do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), avalia que o Bolsonaro também pode ter suas falas enquadradas no artigo 7º da mesma lei, que fala de usar o “poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral”.

“De qualquer forma, a persecução dessas condutas dependeria de um processo de impeachment, o que se mostra cada vez mais improvável”, diz.

Por exemplo: mais de 130 pedidos de impeachment de Bolsonaro já foram protocolados na Câmara desde março de 2019. A prerrogativa de receber ou rejeitar as denúncias, entretanto, é privativa do presidente da Casa, cargo exercido pelo deputado Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro.

Caso o chefe da Câmara receba o pedido, é preciso ainda o voto de 342 deputados para que o andamento do processo seja autorizado. A instauração e o julgamento ocorrem no Senado, onde é preciso o voto de 54 dos 81 senadores para que o presidente perca o mandato.

No rol de crimes comuns, previstos pelo Código Penal, a maioria dos especialistas avalia ser difícil enquadrar o comportamento do presidente. O professor Ricardo Gloechker, da PUC-RS, diverge.

Para ele, os ataques reiterados contra o sistema eleitoral podem caracterizar o crime de golpe de estado, previsto no artigo 366 da lei penal, que trata da tentativa de “impedir o funcionamento das instituições constitucionais”.

Devido à prerrogativa de foro do cargo, Bolsonaro só pode responder por crimes comuns se houver uma denúncia do procurador-geral da República, cargo exercido por Augusto Aras, que tem se mostrado alinhado ao presidente em diferentes temas.

Caso Aras faça a denúncia, o que é improvável, é preciso em seguida do aval da Câmara para que o caso tenha andamento e Bolsonaro possa ser julgado no STF (Supremo Tribunal Federal).

Folha