Bolsonaro volta a citar ditador
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Agência O Globo
“Deus, pátria e família”. Ao receber o coração de D. Pedro I em cerimônia no Palácio do Planalto na última terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro repetiu a frase que foi lema da ditadura do Estado Novo em Portugal.
“Dois países, unidos pela História, ligados pelo coração. Duzentos anos de independência. Pela frente, uma eternidade em liberdade. Deus, pátria e família. Viva Portugal, viva o Brasil”, declarou o presidente.
Fundado em 1933, o Estado Novo foi comandado por 36 anos pelo ditador António Salazar. É a era repressiva mais longa da Europa e durou 41 anos (48 anos se contar desde o golpe militar de 1926). Terminou em 25 de Abril de 1974 com a Revolução dos Cravos.
Embora o presidente tenha dito a frase outras vezes como parte da estratégia de campanha, foi a primeira vez que especialistas portugueses e a imprensa de Portugal notaram ou citaram a referência ao Estado Novo.
Historiadora portuguesa especialista no período da ditadura, Irene Flunser Pimentel lembra que o lema surgiu em discurso de Salazar em Braga, em 1936. Ela disse ter ficado surpresa com a reciclagem da frase no breve pronunciamento do presidente em Brasília.
“Bolsonaro foi buscar a frase de Salazar, lema da ditadura portuguesa. Nem o Marcello Caetano, que substituiu o ditador, disse tal coisa. Se Bolsonaro repete o lema, é porque deseja que haja ditadura”, afirmou Pimentel.
A trilogia da ditadura era divulgada em cartazes, até hoje vendidos na internet a € 20 (R$ 101). Assim como os livros escolares do Estado Novo, à venda nos correios portugueses. Na propaganda do regime, o homem é provedor e à mulher cabe papel subalterno.
Na ilustração do cartaz “A lição de Salazar”, o homem chega do trabalho e é recebido pela família na casa decorada com itens religiosos. A mulher faz a comida, crianças se agitam. A bandeira de Portugal é visível da janela. Na parte inferior esquerda, o lema: “Deus, pátria e família”.
No congresso da sigla de ultradireita Chega, em novembro de 2021, o líder André Ventura repetiu a frase e adicionou a palavra trabalho. Ele não esconde a postura xenófoba e racista: discriminou ciganos e chamou de bandidos uma família negra.
“São ambos discursos para o público conservador, ligado ao período da ditadura e aos partidos de extrema direita, que repetem o lema, como Ventura. Se Bolsonaro acha que o relacionamento dele com Portugal tem que ser assim, o problema é dele”, disse Pimentel.
O cientista político António Costa Pinto lembra que o lema foi usado por regimes autoritários europeus entre as Guerras Mundiais. Virou mote do movimento integralista, de inspiração fascista e fundado no Brasil por Plínio Salgado, exilado em Portugal na ditadura de Salazar:
“Bolsonaro pode ter lido alguns integralistas brasileiros, como Plínio Salgado. Mas a frase significa reafirmar valores autoritários de Salazar. Mas também, no caso do Brasil, para reafirmar valores autoritários que marcam a presidência e o passado político de Bolsonaro.
Autor de “O Regresso das Ditaduras?”, Pinto analisa que o breve discurso diante do coração de D. Pedro foi voltado para consumo e manutenção do público fiel, mais ligado à mensagem crua do que aos fundamentos políticos.
“O que interessa para Bolsonaro é falar de Deus, pátria e família, um discurso conservador na sociedade contemporânea. Fico surpreso porque D. Pedro foi um liberal. Para consumo brasileiro, o coração virou um símbolo nacionalista”, afirmou Pinto.
O cientista político José Adelino Maltez acha curioso que Bolsonaro tenha proferido a frase diante do coração de D. Pedro. Ele explica que o monarca foi ferrenho opositor da Igreja após vencer a guerra contra o irmão D. Miguel e assumir como regente do Algarve.
“É incrível que D. Pedro venha a ser tratado como beato. O seu coração deve saltar. Talvez tenha sido a maior espada contra a Igreja em Portugal. Fez a limpeza dos imóveis da Igreja numa das maiores nacionalizações de bens. Bispos foram expulsos…”, contou Maltez.
Para Maltez, D. Pedro também não pode ser enquadrado em outro aspecto do lema.
“É horroroso vê-lo como símbolo de Deus, pátria e família, porque era um libertino. Ele era tudo, menos qualquer coisa na linha deste lema”, explicou Maltez.
Professora da Universidade de Lisboa e cientista política, Isabel David identificou uma tentativa de adequação da imagem de D. Pedro aos propósitos do discurso:
“Bolsonaro vai buscar quem é fundador do Brasil. Ao mesmo tempo, usa o lema da ditadura portuguesa e associa as duas coisas. Típico populismo de direita, que reinventa fatos e personagens e os transforma para adequar à ideologia.”
A professora finaliza lembrando que, neste momento de campanha à reeleição, a tentativa de associação, de pegar carona na saga do monarca, ficou evidente.
“Nesta fase crítica da campanha, dá a ideia de que é a continuação da tradição de D. Pedro. Se apropria da imagem, invoca o tradicionalismo para se legitimar como continuador de D. Pedro, aquele que vai conduzir o Brasil a bom porto”, concluiu David.