Brasil preparação resistência ao golpe
Folha: Rubens Cavallari/Folhapress
O advogado José Carlos Dias sabe o que é enfrentar uma ditadura. Formou-se em direito na véspera do golpe militar, foi preso três vezes pela repressão e defendeu mais de 500 perseguidos políticos. Ele imaginava que, no Brasil democrático, poderia desfrutar de tranquilidade, alegria e paz.
“Quando me vejo com 83 anos precisando lutar, digo: ‘É fogo’. Mas é um compromisso que tenho. Enquanto eu estiver vivo, vou defender os direitos humanos e a democracia”, afirma à Folha.
Não é força de expressão. Neste 11 de agosto, em evento que começa às 10h na Faculdade de Direito da USP, ele será o responsável por ler o manifesto “Em defesa da democracia e da Justiça”.
O documento, assinado por entidades empresariais, centrais sindicais e organizações da sociedade civil, é uma resposta às investidas do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra o processo eleitoral e o Estado democrático de Direito. Apelidado de “carta dos empresários” ou “carta das entidades”, soma-se a outro texto que também será lido nesta quinta, no mesmo local, por volta das 11h30: a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito”, que conta mais de 800 mil signatários.
“Essa manifestação de agora, com esses dois documentos, é a preparação para uma resistência”, afirma Dias, para quem Bolsonaro caminha para tentar um golpe. “A nossa esperança é acordá-lo para o seu compromisso de respeitar a democracia.”
Movido por esperança semelhante há quase meio século, Dias foi um dos articuladores da “Carta aos Brasileiros”, documento histórico lido por Goffredo da Silva Telles Jr. no pátio da Faculdade de Direito da USP, em 8 de agosto de 1977. “Havia uma grande esperança da sociedade civil de retomar a democracia”, relembra Dias, que foi ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso. “Agora estamos tentando recuperar a democracia, porque estamos vivendo uma democracia capenga.”
Como o sr. se sente tendo sido escolhido para ler um dos manifestos no dia 11 de agosto? Foi uma honra. Não tive como dizer não. A minha história está dentro da faculdade. Ver isso acontecer, capital [representado por entidades como Fiesp e Febraban] e trabalho [centrais sindicais] assinando um documento, é uma coisa fascinante. É histórico.
Que recado esses dois manifestos passam para o presidente? Passam a ideia de que ele tem que parar de afrontar a democracia. A nossa esperança é acordá-lo para o seu compromisso de respeitar a democracia, porque acho que ele caminha para um golpe.
Discordo do meu querido amigo José Gregori [que, em entrevista à Folha, disse não ver risco de golpe]. Alguma coisa se prepara. Tenho muito medo dos agentes provocadores. [Durante a ditadura], havia pessoas infiltradas em muitas manifestações, passeatas. Tenho receio disso.
Como as instituições reagiriam a isso? Não sei como seria, mas digo que essa manifestação de agora [11 de agosto], com esses dois documentos, é a preparação para uma resistência. E não vai ficar por aí, porque pelo Brasil inteiro vai ter repercussão. Eu, por exemplo, não sou PT. Até me dou bem com o Lula, tivemos contatos, fomos presos juntos [em 1980, durante a ditadura]. Vou votar nele porque ele representa a oposição. Se quem disputasse com o Bolsonaro fosse outra pessoa, eu votaria nessa outra pessoa.
Cada vez mais a sociedade está se organizando para dar um basta. Esse presidente é um delinquente. Digo isso com todas as letras. O que esse homem já praticou de crimes é uma coisa extraordinária. Principalmente crimes de responsabilidade. Tanto assim que nós estamos com um processo no Tribunal Penal Internacional, do qual a Comissão Arns é uma das signatárias. Aquela reunião que ele fez com embaixadores, lá está um crime. Ele não se conforma com as urnas eletrônicas porque elas, que o elegeram por várias vezes, vão consagrar a sua derrota. Ele está consciente da derrota.
E é por isso que esse homem… Psicopata, não sei, mas ele não é normal, ele não aceita nem o conselho de seus amigos. Ele nos chama de cara de pau, sem caráter… O que faz contra o Poder Judiciário, os insultos dirigidos aos ministros do STF [Supremo Tribunal Federal], do TSE [Tribunal Superior Eleitoral].
Bolsonaro tem tentado desmerecer as cartas pela democracia de diversas maneiras. Uma delas é dizer que se dirige especificamente contra ele, embora os organizadores tenham tomado cuidado para que elas não fossem pró-PT nem anti-Bolsonaro. Como o sr. vê essa questão? É ele quem desmerece a democracia. Se estivesse lá um presidente equilibrado, fazendo uma campanha normal, isso não se justificaria. Mas esse homem não trabalha. Ele está fazendo campanha o tempo todo. Essas cartas são de defesa da democracia. E, para defendê-la, tem que denunciar as coisas que ele [Bolsonaro] faz.
Houve vários manifestos a favor da democracia e dos direitos humanos durante o governo Bolsonaro. Por que desta vez a adesão foi tão ampla? Porque estamos na boca das eleições. O Brasil tem que tomar um rumo. Ou vamos ter a ditadura pelo voto, se vier a reeleição, ou o exercício da democracia pela oposição.
Como seria a ditadura pelo voto? Se está assim agora, imagine se ele tiver o referendo do voto. Porque vai crescer a ganância dele. O desmonte que ele fez… Vai ser muito pior. Vai se sentir absolutamente fortalecido. Ele vai desmontando tudo. Encheu de militares em volta. A cultura sofreu, os indígenas sofreram. Ele explora os evangélicos, insulta as mulheres. Isso ainda agora. Imagina se ganha a eleição? E tem esse centrão, com o qual há um conluio vergonhoso. O Congresso em grande parte é responsável por isso. Todos os pedidos de impeachment ficam na gaveta.
O sr. era estudante na véspera do golpe militar. Eu fui orador da minha turma numa cerimônia no Theatro Municipal [ele se formou em direito na USP em 1963; a cerimônia de formação foi em abril de 1964, dias após o golpe]. E eu disse no discurso que a nossa turma era “despedinte da democracia”.
E é engraçado que, dias antes, o pessoal do Partido Comunista me procurou e pediu para eu maneirar o discurso. O “Partidão” é sempre assim, né? [risos] Mas eu não amaciei. Fiz um discurso duro. O diretor [da faculdade] estava lá. O Gaminha também [Luís Antônio da Gama e Silva, professor de direito, eleito reitor da USP em 1963, tornou-se o primeiro ministro da Justiça logo após o golpe e voltou ao cargo em 1967].
É possível comparar aquele momento com o que o Brasil vive hoje em dia? Naquela época, estávamos à beira de todo um ideário de promessas que eram dirigidas às Reformas de Base [anunciadas pelo então presidente João Goulart e que propunham mudanças estruturais em vários setores].
Havia receio de que a esquerda fosse ganhar [a eleição de 1964], e eles sustentavam que era o comunismo que vinha ameaçar o Brasil, embora não fosse nada disso.
Lembro-me que minha primeira prisão foi na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964. As pessoas desfilaram pelas ruas com palavras de ordem, gritando: “Um, dois, três, Brizola no xadrez! E se tiver lugar, põe também o João Goulart” [os dois foram líderes de esquerda].
O Brasil caminhava para uma proposta mais à esquerda, e então houve o golpe. Agora é diferente, porque a sociedade civil está se organizando para dizer: “Basta!”. Eu espero, não sei se é ilusão minha…
Os manifestos que serão lidos na Faculdade de Direito se inspiraram na “Carta aos Brasileiros”, de 1977. As expectativas em relação aos documentos são comparáveis? A primeira carta, de 1977, nasceu de uma conversa no [restaurante] Circolo Italiano em que estávamos eu, Almino Affonso e Flávio Bierrenbach. Não aceitávamos que os 150 anos da faculdade fossem celebrados por aquela congregação extremamente reacionária, que tinha Gaminha, [Alfredo] Buzaid [ministro da Justiça durante a ditadura].
Então pensamos em fazer um documento em que condenaríamos a situação política do Brasil e faríamos proposta concreta pela redemocratização. E o nome para ser orador era o Goffredo, grande professor, amado pelos alunos. A leitura da carta é impressionante, porque encheu o pátio da faculdade. O Goffredo estava com medo [da repressão]. Nós não tínhamos unanimidade, mas havia uma grande esperança da sociedade civil de retomar a democracia. A luta pela anistia estava em plena efervescência.
E hoje? Agora estamos tentando recuperar a democracia, porque estamos vivendo uma democracia capenga. Temos um presidente que exalta a tortura, que tem como herói o Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do órgão de repressão da ditadura e condenado pela prática de tortura], então para ele toda a esquerda é bandida.
Depois de ter atuado em favor de perseguidos políticos na ditadura, o sr. imaginava que teria tanto trabalho à frente de uma comissão de direitos humanos em plena democracia? Eu defendi mais de 500 perseguidos políticos. Depois de tudo isso, eu imaginava estar numa posição de tranquilidade, paz e alegria. Imaginava poder ser favorável ou contra o governo de uma maneira confortável. Quando me vejo com 83 anos precisando continuar a lutar, eu digo: “É fogo”. Mas é um compromisso que eu tenho. Enquanto eu estiver vivo, eu vou defender os direitos humanos e a democracia.