Cresce movimento de policiais contra armar população

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Foto: Estadão

O País precisa rever o acesso indiscriminado a fuzis de assalto para pessoas registradas como caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) em clubes de tiro espalhados pelo Brasil. É o que defendem policiais e especialistas em segurança pública. A proliferação dos CACs, associado ao chamado porte de arma de trânsito, que autoriza o proprietário do armamento levá-lo carregado de sua casa para o estande de tiro, é hoje um obstáculo para o combate ao crime organizado. Isso porque ele permite que bandidos adquiram armas legalizadas e circulem com elas carregadas sem poderem ser molestados em blitze policiais.

Delegados de polícia e especialistas no mercado de armas acusam a ideologia das armas – apoiada pelo bolsonarismo – de criar um descontrole dos armamentos pesados, favorecendo as ações do Novo Cangaço e permitindo que as facções criminosas e milícias existentes no País continuem a exercer o controle sobre populações de cidades como Manaus, Rio e São Luís. Só nos dois primeiros anos de vigência dos decretos das armas, mais de 45 mil armas pesadas foram vendidas no Brasil.

Os decretos publicados por Jair Bolsonaro para dar um bypass no Estatuto do Desarmamento permitem aos atiradores obter até 60 armas, sendo 30 de uso restrito, como fuzis, além de 180 mil munições por ano. Os caçadores podem comprar até 30 armas por ano, sendo 15 fuzis, e 6 mil munições.

Já os colecionadores não têm limites, apenas o de adquirir cinco armas de cada tipo. Parte dos decretos foi suspensa pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, em 6 de setembro. Ao mirar na segurança das eleições, Fachin satisfez ainda um silencioso e poderoso grupo de pressão: o dos policiais que combatem o crime organizado.

Para acabar com a farra do fuzil, a primeira medida defendida por esses policiais é a proibição da venda e do porte de munição para essas armas. Quem comprou esse tipo de arma aproveitando as brechas criadas por Bolsonaro ficaria em casa com um enfeite, um fuzil que não serviria mais para nada, já que a posse da munição de calibres como 5,56 mm ou 7,62 mm voltaria a ser crime hediondo. Outra proposta feita por Roberto Uchoa, da Polícia Federal, é que o governo recompre para as forças de segurança os fuzis adquiridos por particulares e pague o preço de custo.

Uchoa, que trabalhou no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), mantido pela PF, defendeu as duas medidas na semana passada, no 16.º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A lógica por trás dessas medidas é atingir quem se valeu de decretos de legalidade duvidosa do governo Bolsonaro, que arcaria com o prejuízo. A insegurança jurídica ocorre toda vez que um governo escolhe impor sua vontade e sua ideologia em vez de criar consensos.

Dados do governo mostram que o total de registros de armas nos CACs feitos pelo sistema Sigma, mantido pelo Exército, pela primeira vez na história ultrapassou o número existente no sistema da PF, o Sinarm. São quase um milhão de registros de armas em nome de CACs antes pouco mais de 800 mil com a polícia. Além disso, o governo federal, segundo dados da pesquisadora Michele Ramos, do Instituto Igarapé, reduziu drasticamente a verba para fiscalização dos CACs. O resultado é que somente 3,6 % deles foram alvo de fiscalização em 2021.

“E o pior: o Exército avisa um dia antes o CACs quando vai fazer a fiscalização”, afirmou Uchoa. Assim, quem está irregular tem tempo para se regularizar. “Chegamos a casa de um CAC na zona leste de São Paulo que devia ter 18 armas guardadas. Fizemos a busca com mandado judicial e encontramos apenas uma arma no lugar”, contou o delegado Fernando Santiago, do Departamento de Narcóticos, da Polícia Civil paulista.

A suspeita é que o restante do armamento estivesse emprestado para bandidos. O CAC era parente de um integrante do Primeiro Comando da Capital (PCC) e conseguiu se registrar no Exército, segundo o delegado.

“O Exército não verifica os antecedentes de quem deseja ter registro como CAC. Pede apenas uma declaração de que a pessoa não responde a processo naquela cidade”, contou Uchoa. É isso que permitiu a bandidos do Novo Cangaço adquirirem fuzis para tomar de assalto a cidade de Araçatuba, matando três pessoas na ação. Quando tentou pôr ordem no descontrole criado por Bolsonaro no controle de munições produzidas no País, o general Eugênio Pacelli foi exonerado da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, em 2020. Ele teria enfurecido o presidente com suas medidas, que foram revogadas.

Ao tentar facilitar a vida do cidadão de bem que Bolsonaro quer ver armado com fuzis e o que mais desejar, o governo abriu a porteira para bandidos usarem laranjas e parentes para comprar armas. E para que espertalhões resolvessem ganhar dinheiro para abastecer o crime organizado no País. Além de serem legais, as armas nas mãos dos CACs têm mais uma vantagem em relação ao que antes era contrabandeado: elas são mais baratas. Um fuzil T4 da Taurus sai por R$ 15 mil nas mãos de um CAC, enquanto um Rugger podia custar até R$ 45 mil no Paraguai ou na Bolívia, conforme esta coluna já mostrou.

Uma terceira forma de essas armas irem parar nas mãos dos bandidos é o desvio. Em média, eram desviadas em 2015 por dia no País 31 armas dos CACs. Em 2021, esse número chegou a 112 armas por dia. As armas apreendidas pela polícia também estão mudando de perfil: os revólveres, que antes respondiam por 41% do total, agora representam 36%, enquanto as pistolas saltaram de 21% para 30%.

O descontrole também atinge o porte de arma. “Delegados têm receio de aprender uma arma de um CAC e serem acusados de abuso de autoridade”, afirmou Santiago. Para permitir aos CACs portarem armas até de madrugada, foram criados clubes de tiro abertos 24 horas. Para Uchoa, a maioria é fictícia e existe só para burlar a lei e permitir aos atirador fugir à prisão em flagrante por porte ilegal de arma. A solução para acabar com “a farra do porte ilegal”, segundo os delegados, é acabar com o porte de trânsito.

Por fim, há falta de integração entre as agências que cuidam das armas. “Como o Exército não compartilha os dados com a PF, tivemos uma situação em que uma equipe nossa da PF foi recebida à bala ao cumprir um mandado de busca e apreensão na casa de uma CAC. Os meus colegas não sabiam que o acusado tinha registro de CAC”, contou Uchoa. Um dos delegados presentes no fórum afirmou que em uma operação a munição dos policiais acabou, mas a dos traficantes que estavam sendo caçados não. “Está muito claro que integrantes do crime organizado estão usando os CACs para se armar”, afirmou o delegado Santiago.

Para todos, o controle de armas e munições no País foi afrouxado sem que fosse criada uma estrutura para fiscalizar esse mercado. E, assim, o lobby armamentista, que busca eleger sua bancada no Congresso, terá agora que se haver com um grupo mais amplo, o da população que deseja segurança. E esta, mais cedo ou mais tarde, vai escutar os relatos dos policiais que combatem o crime organizado no País e se dizem de mãos atadas diante do descontrole do setor. Eis mais uma herança que Bolsonaro – caso não seja reeleito – deixará para seu sucessor.

Estadão