Ditadura também fazia uso político de 7/9

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Foto: Reprodução

Décadas antes de o governo Bolsonaro trazer o coração de d. Pedro 1º ao país, os demais restos mortais do primeiro imperador do Brasil foram trasladados para o lado de cá do Atlântico com pompa muito maior.

Entre abril e setembro de 1972, a urna com os despojos do monarca peregrinou pelos quatro cantos do país, visitando capitais do Rio Grande do Sul à Amazônia e atraindo milhares por onde passava.

O retorno dos restos mortais de Pedro 1º era só um dos elementos numa estratégia ambiciosa da ditadura militar para celebrar o aniversário de 150 anos do Brasil independente.

Nas festividades do chamado Sesquicentenário da Independência, o governo do general Emílio Garrastazu Médici “alistou” ainda a figura de Tiradentes, a seleção brasileira de futebol (convocada para uma Minicopa), o cantor Roberto Carlos e um filme blockbuster estrelado pelo então jovem galã Tarcísio Meira, entre outras atrações.

“Ao propor retornar ao passado para contar a história da Independência, a ditadura escolheu uma versão bastante autoritária do passado, que representava, afinal, seus valores, pontos de vista e projetos para o futuro”, afirma a historiadora Janaína Martins Cordeiro, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autora do livro “A Ditadura em Tempos de Milagre”.

“Essa série de cerimônias investiu muito na dimensão simbólica representada por um nacionalismo viril, bélico”, diz Carlos Fico, professor de história do Brasil da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

“Houve, inclusive, um certo conflito interno sobre o que fazer durante o sesquicentenário. Figuras mais moderadas defendiam centrar as celebrações em Tiradentes, enquanto os setores mais linha-dura convenceram Médici de que dom Pedro era o representante ideal das aspirações deles.”

Em parte, a superprodução patriótica bancada pela ditadura só se tornou possível porque, em 1972, o Brasil vivia o chamado milagre econômico, durante o qual o PIB do país chegou a crescer a taxas anuais de mais de 10% a partir do final dos anos 1960. A sensação de bem-estar material era acompanhada pela euforia em torno do tricampeonato da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, realizada no México.

Em seu discurso de final de ano em 1971, o general Médici resumiu o espírito da época: “A nação tem hoje a tranquila consciência de sua grandeza, em termos realistas, possíveis e viáveis. Temos agora a certeza de que o eterno país do futuro se transformou, afinal, no país do presente”.

“Sem dúvida, as comemorações se beneficiaram do exagero em torno do chamado milagre brasileiro na economia. Elas também, claro, aproveitaram-se de um clima de otimismo bastante generalizado que havia entre muitos setores da população na época”, diz João Paulo Pimenta, professor do Departamento de História da USP.

“Mas o regime, ao realizar esses eventos, também tinha consciência das suas fraquezas. Tanto é que, nas eleições seguintes, em 1974, ele sofre grandes reveses.”

Ao trazer os despojos de Pedro 1º de navio, com honras militares, a ditadura brasileira emprestou parte de sua imagem de pujança a outro regime autoritário que andava mal das pernas, o salazarismo português.

A ideia era celebrar a “irmandade” entre os povos dos dois lados do oceano, com menos ênfase na ideia de que teria havido uma ruptura histórica quando o Brasil se tornou independente —afinal de contas, a família imperial brasileira era de origem lusa, e d. Pedro havia se tornado rei de Portugal quando abdicou do trono do Brasil.

Assim, os restos mortais do imperador foram trazidos para o Rio de Janeiro pelo presidente de Portugal, Américo Thomaz, que declarou que o “torrão predileto” dele sempre fora o território brasileiro.

“Parece-me que, naquele momento, era melhor para os portugueses se associarem ao Brasil do que o inverso”, pondera Cordeiro, da UFF.

“Na época, circulou muito uma narrativa segundo a qual os portugueses saberiam o momento exato de conceder a independência às suas colônias. Esse momento seria quando elas alcançassem sua maturidade, como havia sido o caso do Brasil 150 anos antes.”

Curiosamente, a Minicopa, ou Taça Independência, teve como final o confronto entre Brasil e Portugal –a ideia original era trazer todas as seleções que já tivessem vencido uma Copa do Mundo para o torneio, mas os campeões europeus, como Itália e Inglaterra, acabaram não comparecendo. A seleção brasileira tricampeã venceu também a final da Minicopa —por 1 a 0, com gol de Jairzinho.

Além da peregrinação dos despojos do imperador pelas capitais estaduais —e também pela modesta Pindamonhangaba (SP), escolhida porque soldados da região tinham acompanhado d. Pedro no célebre grito do Ipiranga—, as celebrações do ano incluíram também louvores a Tiradentes.

Para o regime, o militar mineiro seria uma espécie de precursor da Independência (embora tivesse se rebelado contra a avó do próprio dom Pedro no século 18).

Shows musicais e outras apresentações atraíam o público, com propagandas na TV nas quais Roberto Carlos animava a população.

“É isso aí, bicho. Vai ter muita música, muita alegria. Porque vai ser a festa de paz e amor, e todo brasileiro vai participar cantando a música de maior sucesso do país: ouviram do Ipiranga as margens plácidas”.

O ano de celebrações foi coroado pelo lançamento de “Independência ou Morte”, filme no qual Tarcísio Meira interpreta um heroico dom Pedro 1º, enquanto sua mulher, Glória Menezes, vivia a marquesa de Santos, amante do imperador. Com linguagem novelesca, o filme atraiu quase 3 milhões de espectadores.

“Não era um filme produzido pelo regime militar ou a pedido dele, ao contrário do que muita gente imagina, mas acabou virando um símbolo do clima da época”, diz Pimenta. O próprio Médici fez questão de cumprimentar os membros da produção, que foi exibida para o alto escalão do governo em Brasília.

Folha