Fieis evangélicos brigam entre si por política
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No dia 11 de agosto, a Congregação Cristã no Brasil, uma das igrejas pentecostais mais antigas do país, sem um histórico de engajamento político relevante, divulgou uma circular.
Assinada por sua cúpula, o Conselho dos Anciães Mais Antigos do Brasil, a nota desaconselhava o voto em candidatos ou partidos contrários “aos valores e princípios cristãos” ou que “proponham a desconstrução das famílias no modelo instruído na palavra de Deus, isto é, casamento entre homem e mulher”.
Foi por causa dessa orientação que o irmão de Davi Augusto de Souza bateu boca com um pregador em Goiânia. Disse que igreja é para falar de Deus, não de política.
Duas semanas depois, um PM que tomou as dores do líder esbarrou com o parente do desafeto e disparou um tiro que atravessou suas duas pernas. Davi tinha ido à igreja naquele dia para tocar na banda.
Ele conta que tirou várias veias no que calcula terem sido umas sete cirurgias desde então. As dores intensas persistem. A carne ainda não cicatrizada é também um símbolo das feridas abertas que esta eleição tem deixado entre evangélicos.
A perseguição acontece sobretudo com crentes que manifestam simpatia a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ou à esquerda em geral. A animosidade já levou ao expurgo de pastores desalinhados à maioria bolsonarista na liderança dos templos.
O saneamento ideológico atingiu três pastores que foram ao primeiro encontro da campanha lulista com esse segmento cristão.
Paulo Marcelo Schallenberger tinha moral no Gideões Missionários da Última Hora, congresso pentecostal sediado em Santa Catarina que projetou nomes como o deputado Marco Feliciano (PL-SP) —seu amigo, aliás. Em 2020, Paulo Marcelo chegou a ser candidato a vereador pelo Podemos, partido insuspeito de canhotismo político, que na época abrigava Feliciano. Também já foi filiado ao conservador PSC.
Em 2011, pregou no centenário da Assembleia de Deus no país, honra que dividiu com o pastor Silas Malafaia.
Em fevereiro, após a Folha publicar reportagem mostrando sua aproximação com Lula, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, a mais poderosa das alas assembleianas, emitiu nota dizendo que Paulo Marcelo não era membro dela. Ele diz que a integrava desde 2004.
“Há pastores sendo excluídos de denominações, irmãos crentes proibidos de tocar na banda [da igreja], de tomar a Santa Ceia”, diz o hoje candidato a deputado federal pelo Solidariedade, partido na coligação de Lula. “Vão passar muitos anos para a igreja evangélica no Brasil se curar desse mal.”
Sergio Dusilek foi chamado de “ridículo” e “falso profeta” na semana em que renunciou à presidência da Convenção Batista Carioca. Estava sob pressão depois de afirmar que os evangélicos deveriam pedir perdão ao ex-presidente.
Aponta um “histórico de semeadura anti-esquerda” para explicar o comportamento dos pares batistas. E brinca: está até “pensando em virar petista, o que nunca fui”.
Oliver Goiano, do Núcleo de Evangélicos do PT, diz que, em seu caso, o acossamento precedeu a chegada de Jair Bolsonaro (PL) no poder.
“Em 2018, recebi um telefonema de um amigo pedindo que eu me sentasse. ‘Você foi desligado da Ordem dos Pastores Batistas do Rio.’” Ele pastoreava na maior igreja batista de Maricá (RJ).
O estranhamento, segundo Goiano, começou quando o então prefeito da cidade, do PT, o procurou para falar sobre um seminário teológico. “Muitos pastores não podem falar que votam em Lula. É como se estivessem na Idade Média. Querem a cabeça, querem fogueira.”
“Há um clima de intolerância, de desrespeito à opinião”, diz Ed René Kivitz, teólogo e pastor da paulistana Igreja Batista de Água Branca. Ele foi alvo de polêmica própria, ao ser desligado da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil após dizer que a Bíblia precisava ser atualizada por conter trechos homofóbicos. A tônica da fala fez dele um pária entre colegas.
Demandas progressistas também provocaram rachas entre presbiterianos. Em julho, o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil proibiu mulheres de pregar, e um grupo veio a público criticar “a violência simbólica que nos foi imposta”, esculpida a partir de “interpretações machistas” da Bíblia. A igreja já tinha ensaiado publicar um repúdio ao “pensamento de esquerda”, mas recuou.
Aliado de Bolsonaro, Malafaia diz que “você nunca vai ver um líder grande, e estou falando a liderança top”, dizer que um crente não pode ser esquerda. “Isso aí é pastor, sabe, de um nível menor.”
“Nunca vou dizer na minha igreja, ‘olha, você não vota em Lula’. Eu só mostro o que a esquerda pensa e o que nós pensamos, e quem é que pensa como nós pensamos?”
Segundo o pastor, o que há são “esquerdopatas” que “vêm com essa historinha de vitimização porque um cara teve uma briga”. Incidentes como o de Goiás, diz, são raros num contingente tão grande de pessoas. “Num universo de mais de 60 milhões, isso não é nada.”
Para Ed René, essa adesão ao conservadorismo que Bolsonaro soube capitalizar tão bem é favorecida por algumas teologias que circulam entre religiosos. Uma delas é a teologia da batalha espiritual.
“Justamente essa noção da luta do bem contra o mal, da luz contra as trevas. Esta linguagem bélica, que transforma o seu próximo não no seu divergente, mas no seu inimigo, alguém a ser eliminado.”
A opinião da liderança, irradiada para a base da pirâmide, reforça essa ideia de que há forças demoníacas para derrubar. O pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, é um bom exemplo. Além de fazer parte de um clã de tradição no segmento, ele é o que podemos chamar de influencer evangélico.
Quando um seguidor quis saber se votar em Lula é pecado, respondeu em seu Instagram: “Não. É só falta de conhecimento da seriedade do mal e ideologia maligna por trás da esquerda”.
“Quando a pessoa está determinada em te enviar para o inferno, ela vai até as últimas consequências”, diz Luciana Pettersen, que vive na mineira São João Del-Rei. Ela se posiciona como feminista negra “e com posições políticas muito claras”, o que “costumava ser um problema dentro de algumas igrejas”.
“Lembro de uma em especial onde os jovens sempre me atacavam muito, principalmente no pós-culto, falando que eu ia para o inferno por acreditar nas coisas que eu acreditava.”
A agressividade extrapolou as palavras no caso do fiel baleado em Goiás. Na cadeira de rodas, Davi ainda não sabe quando vai conseguir voltar após o ataque que sofreu num lugar onde as pessoas se chamam de irmão e irmã.
“Fui beber água, cumprimentei os amigos, esse rapaz estava lá. Cumprimentei e ele já me olhou diferente, sabe? Jogou água no meu rosto, me xingou de vagabundo, sacou a arma e já meteu bala em mim.”
Davi diz que o policial que atirou nele sabia que sua família era petista. “Nem todos são. Alguns torcem pro Bolsonaro, outros pro Ciro [Gomes]. Eu sou petista, voto no PT. E vou votar de novo.”