Inflação alta obriga brasileiros a mudar hábitos

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Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Os sinais do longo período de inflação alta, visíveis em uma ida ao supermercado, na contratação de serviços ou em outras atividades cotidianas, reduziram o poder de compra e transformaram a relação do brasileiro com o dinheiro. A escalada de preços vêm provocando mudanças de hábitos, o adiamento de planos e elevando o endividamento da população, revelam duas pesquisas Ipec, realizadas a pedido do GLOBO. Os impactos foram mais severos entre os mais pobres, segundo os levantamentos.

Quatro em cada dez diminuíram a quantidade de alimentos básicos comprados ou deixaram de adquirir determinados itens, enquanto 36% fizeram o mesmo com remédios. Na área da saúde ainda, cerca de metade diz não ter mais plano privado.

Giselle de Souza, ex-vendedora de pano de prato em Brasília, é um bom exemplo. “Já deixei de comprar carne e algumas verduras para conseguir trazer arroz, feijão e óleo”, conta (leia relato na página ao lado).

Em outro efeito, 80% postergaram a compra de bens de maior valor — de carros a eletrodomésticos —, enquanto 60% afirmaram ter adiado planos de começar curso ou estudos. Pior: 32% dizem ter abandonado o curso que já estavam fazendo. Tanto o adiamento como o abandono são decisões que podem acarretar perdas salariais no futuro.

Inflação é o quinto maior problema do Brasil — Foto: Arte

Os reflexos da inflação no cotidiano dos brasileiros — Foto: Arte

Quase metade contraiu dívida para pagar despesas, o que aparece há meses em distintos levantamentos sobre a saúde financeira das famílias. Em julho, 78% delas estavam endividadas, e 29% com contas atrasadas, de acordo com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Com a alta, os indicadores atingiram o maior patamar desde 2010, quando começaram a ser medidos.

Na maioria dos casos, os especialmente afetados fazem parte do grupo mais pobre e menos escolarizado. Entre aqueles com renda familiar mensal de até um salário mínimo, 69% afirmaram ter protelado o início dos estudos — na média da população, o índice é nove pontos percentuais menor. Neste mesmo grupo, 60% contraíram dívidas para coibir despesas correntes (48% no geral) e 44% venderam bens para saldar pagamentos em atraso (30% no geral).

Na campanha eleitoral de 2018, inflação era um tema lateral. Uma pesquisa do Ipec naquele ano mostrou que apenas 6% dos brasileiros (o equivalente na época a 10 milhões de pessoas) a consideravam um dos maiores problemas. Em quatro anos, foi a área que deu o maior salto, chegando a 18% (ou 30,6 milhões de pessoas). Hoje fica atrás somente de desemprego, corrupção, saúde e educação na lista de preocupações dos brasileiros.

O país fechou 2017 com uma inflação de 2,95%, de acordo com dados do IBGE. No ano passado, portanto antes da guerra na Ucrânia, os preços saíram do controle. O brasileiro começou a sentir uma carestia de dois dígitos a partir de setembro de 2021 e não parou mais. Este ano, os preços ganharam novo ímpeto após a invasão russa, que afetou o mercado de petróleo e de alguns alimentos.

Mesmo com as recentes medidas para forçar a queda artificial do valor dos combustíveis, o Brasil é o quarto com a maior taxa de inflação dos últimos 12 meses no ranking das 20 maiores economias do mundo. Apesar da desaceleração recente, o IPCA acumulado em 12 meses está em 10,07%.

Em grande parte do mundo, o impacto econômico da pandemia seguiu um roteiro semelhante. Houve elevação nos valores das commodities e desarranjo nas cadeias produtivas e na logística global. Em vários lugares, empresas previram que a demanda cairia e reduziram a produção. Outras tiveram que fechar as portas devido à pandemia.

O aumento repentino da procura por determinados produtos, como computadores, causaram elevação de preços e escassez de chips, com reflexos em diferentes setores — a venda de carros novos na pandemia é um exemplo. Concomitantemente, governos tomaram medidas para estimular a demanda. O resultado disso tudo foi a explosão da inflação.

Este ano, a guerra na Europa complicou ainda mais a situação, com seus efeitos nos preços dos produtos exportados pelos países envolvidos, principalmente petróleo e alimentos.

No Brasil, a dinâmica teve agravantes locais. O trabalho do Banco Central de trazer o IPCA para perto do teto da meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional foi dificultado pelo dólar, que se manteve alto devido, entre outras coisas, à instabilidade política quase constante e às incertezas quanto à política fiscal. A cotação da moeda subiu da casa de R$ 4,70 em março de 2020 para patamares próximos a R$ 5,80 ao longo de 2021, encarecendo importações e alimentando a inflação.

— A elevação da inflação é um fenômeno global provocado por consequências da pandemia na economia. No Brasil, essa conjunção de fatores foi potencializada por uma percepção de risco maior. Essa situação afetou o câmbio. Por isso o Brasil teve um efeito inflacionário mais pronunciado e persistente — diz a diretora da área de Macroeconomia e Análise Setorial da Tendências Consultoria Integrada, Alessandra Ribeiro.

Com o objetivo de apresentar soluções para o desafio da inflação, O GLOBO convidou a Tendências Consultoria Integrada e a Schwartsman & Associados, ambas com sede em São Paulo, para listar as medidas que devem ser adotadas pelo presidente que for eleito no mês que vem.

— As duas prioridades principais são manter a política monetária alinhada com a trajetória de metas e garantir que a política fiscal não atrapalhe — resume o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central.

O GLOBO convidou as consultorias Tendências e Schwartsman & Associados para elaborar uma lista de medidas que devem ser adotadas pelo governo com a intenção de fortalecer o combate à alta de preços.

O que fazer: o país precisa de uma nova regra capaz de ancorar as expectativas quanto à trajetória de gasto e da dívida, alinhada a uma agenda de reformas guiada pela eficiência do gasto. Neste sentido, uma reforma administrativa ambiciosa seria crucial. Uma melhor percepção fiscal ajuda na ancoragem das expectativas de inflação. Além disso, há um efeito positivo importante via apreciação cambial.

O que fazer: a autoridade monetária precisa continuar livre de intervenções políticas ou circunstanciais para atuar conforme o mandato estabelecido. Tal aspecto é fundamental para manter as expectativas de inflação ancoradas às metas, facilitando a tarefa de perseguir uma inflação mais baixa e próxima dos objetivos.

O que fazer: as políticas fiscal e monetária devem estar constantemente alinhadas, evitando, por exemplo, estímulos de demanda através de mais gastos que dificultem o trabalho do Banco Central de convergir a inflação às metas.

O que fazer: o Conselho Monetário Nacional definiu metas de inflação em 3% para 2024 e 2025, o que será um importante teste à credibilidade do regime. Visando a preservação de um ambiente de inflação baixa no médio prazo, é fundamental que o Banco Central (preferencialmente com a ajuda de uma política fiscal austera) execute a política monetária necessária para a manutenção da inflação ao redor das metas estabelecidas.

Avançar com a reforma tributária e as agendas de privatizações e concessões e reformas microeconômicas

O que fazer: essas medidas são importantes para viabilizar, via ganhos de produtividade, a elevação do PIB potencial, melhorando a capacidade de oferta do país. Uma economia mais eficiente e dinâmica tem a capacidade de responder aos movimentos da demanda gerando menores pressões em preços.

O que fazer: mudanças voluntaristas em regras e arcabouços institucionais ou acordos estabelecidos com o setor privado elevam a percepção de risco, afetando negativamente os ativos como a taxa de câmbio, com consequentes impactos para a inflação. Assim, a manutenção de um ambiente de respeito às regras e contratos facilita o trabalho do Banco Central de manter a inflação alinhada à meta.

O Globo