Mesários podem ser os heróis desta eleição

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Foto: Léo Martins/Marcelo Curia

Numa eleição marcada pela polarização e precedida de ataques recorrentes e infundados do presidente Jair Bolsonaro (PL) às urnas eletrônicas, eleitores que vão atuar como mesários lidam com sentimentos conflitantes: ao mesmo tempo em que estão apreensivos, destacam a vontade de participar do processo eleitoral para ajudar a garantir que ocorra dentro da lei. Em 2 de outubro, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 1,7 milhão de brasileiros ocuparão seus postos nas seções eleitorais — desses, 848 mil (48%) como voluntários. O número dos que quiseram trabalhar no pleito quase dobrou em relação às eleições de 2018, que registrou 432 mil. O programa de voluntariado foi lançado em 2004.

Novas regras criadas pelo TSE para este ano — como a proibição de entrar na cabine de votação com o telefone celular — deixaram o clima ainda mais tenso. Em 2018, houve casos de eleitores que tiraram selfies ou fotografaram a tela da urna, comprometendo o sigilo do voto. Há ainda a possibilidade de ataques às urnas, preocupação de mesários ouvidos pelo GLOBO.

Atentos aos riscos a que os mesários estarão expostos, Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) adotaram medidas inéditas de segurança. Mesários convocados e voluntários estão assistindo a vídeos sobre como devem reagir a determinados comportamentos. Há ainda esquemas especiais de policiamento para dar suporte às zonas eleitorais.

Como foi a participação de voluntários nas últimas eleições — Foto: Editoria de arte

Formada em Serviço Social, Anna Paula Nascimento, de 40 anos, tornou-se voluntária neste ano para acompanhar o filho André Luiz Moraes, de 18, que foi convocado pela Justiça Eleitoral e vai votar pela primeira vez. Embora considere a função de extrema importância, foi o medo de violência que a fez virar mesária.

— Queria ficar perto do meu filho, que é novo e ingênuo — diz Anna Paula, ao explicar que o filho é disléxico. — Tenho medo por causa do cenário polarizado.

Moradora do Complexo do Alemão, no Rio, e eleitora desde os 16, Anna faz parte dos 68% de mulheres que serão mesárias nas eleições de 2022; homens são 32%. O filho André Luiz compartilha da apreensão da mãe, mas diz ter orgulho por ter sido chamado:

— É uma responsabilidade.

É dos mesários este ano um papel fundamental para manter o sigilo do voto. Conforme o Manual do Mesário, divulgado pelo TSE, sob a guarda deles ficarão celulares, tablets, máquinas fotográficas, filmadoras ou qualquer outro equipamento que comprometa a votação. Em casos de resistência, o eleitor será impedido de votar, e o presidente da seção pode acionar a força policial.

Em Jataí (GO), quem comete crime eleitoral no dia do pleito é levado ao ginásio de esportes da cidade. Quem conta é o servidor público Evaldo Gonçalves, de 33 anos, mesário desde os 18. Em 2016, foi para lá que mandou um eleitor flagrado tirando foto da urna.

Em sua quinta eleição, o porteiro Júlio Rangel, de 52 anos, conta que já precisou intervir, em 2016, para que regras do TSE fossem cumpridas numa seção no bairro de Cambuí, em Campinas (SP). Hoje, ele teme reações agressivas:

— Cheguei para trabalhar, e o presidente da seção estava com santinhos. Queria desvirtuar votos dos mais vulneráveis, mas conseguimos intervir. Meu medo nesse pleito também é esse. São muitos cargos para votar e há sempre pessoas mal-intencionadas.

Rangel é pai de uma menina de 9 anos e quer deixar um exemplo para a filha: exercer a democracia. A expectativa dele é que, quando completar 18 anos, a menina “assuma” o posto de mesário da família.

O mesmo “legado” foi deixado pela mãe da analista de marketing Deise Freitas, de 30 anos. Moradora de Porto Alegre, é mesária de primeira viagem e conta que, embora sempre tenha visto o exemplo dentro de casa, só neste ano sentiu a necessidade de participar.

O sentimento é o mesmo de Flávia Oliveira, de 33 anos. Baiana, monitora de pesquisa clínica, já trabalhou nas eleições quando era mais nova. Agora, diante da polarização, se viu na obrigação de contribuir e se tornou voluntária:

— Quando fui mesária, o filho de uma idosa, já em estado de demência, ficava falando “mãe, tem que apertar no verde”, em alusão a um partido da cidade, tentando persuadi-la. Ali, vi a importância de ter os mesários por perto. Pedimos para que ele se retirasse.

Cada dia trabalhado nos locais de votação dá direito a dois de folga para o mesário em seu emprego e pode contar como horas complementares para estudantes. Além disso, a Justiça Eleitoral paga um auxílio de R$ 45 para alimentação.

Para a cientista política e professora da UFRJ Mayra Goulart, o aumento do voluntariado é uma reação às crises política e econômica por parte da população, que vive uma politização da vida privada:

— Temos uma liderança popular de extrema-direita que hostiliza o sistema político. Isso desperta uma aceitação ou reação no sentido de defender a democracia. Vale lembrar que é uma eleição disputada pelos dois maiores líderes em termos de popularidade, o que também aumenta o interesse.

Longe dos centros urbanos, a 228 quilômetros da sede do município de Itamaraty, no Amazonas, na Escola Municipal da tribo Kanamari, o coordenador de logística Manoel Kanamari, que é indígena e membro da aldeia, atua como mesário há 16 anos. A experiência tem suas peculiaridades. Para ele, a distância e o acesso a determinadas regiões é o principal empecilho:

— De barco (até a zona eleitoral) são dois dias.

Ele conta que é preciso passar horas na estrada de barro ou navegando em canoas para acessar a urna. Por falar português, Kanamari e Beni, ele é sempre convocado para ajudar na comunicação com os povos originários.

— Eu fazia essa intermediação. A gente precisa verificar o título de eleitor porque muitos indígenas possuem nome social e nome de tribo. Por isso, é preciso ter atenção. Além da polícia militar, sempre temos também um indígena na porta para ajudar na orientação.

Em outro estado da Região Norte, o Acre, a tribo Marunau, no alto do Tucurasá, terá pela primeira vez urna eletrônica. Moacy Shãkõpapa será mesário pela primeira vez. Em outros pleitos, ele precisava viajar de canoa para cidades próximas.

— Antes meu povo precisava passar horas navegando para votar em tribos vizinhas. Muitos adoeciam no caminho. Agora será diferente, estou animado e espero que tudo corra bem — diz.

O Globo