Movimento evangélico mergulha na política

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Foto: Domingos Peixoto

Ao subir no palanque do ex-presidente Lula (PT) há 12 dias, em São Gonçalo (RJ), o pastor Sergio Dusilek gerou uma crise na Convenção Batista Brasileira. Um vídeo da sua fala clamando os evangélicos a pedirem perdão para o petista viralizou nas redes e provocou reação de lideranças. Pressionado, Dusilek renunciou do comando da Convenção Batista Carioca, alegando que “não teria acontecido nada se tivesse falado do (presidente) Jair Bolsonaro”.

O episódio é mais um que expõe a recente politização do discurso religioso nas chamadas igrejas históricas brasileiras, tradicionalmente avessas a qualquer protagonismo em eleições. Outra controvérsia já atingira a igreja Batista no início do mês, quando o ex-ministro Marcos Pontes (PL), candidato ao Senado por São Paulo, foi interpelado por um fiel irritado com o pedido de votos em um culto: “Está errado. Aqui é a casa do Senhor, não é lugar de política”, reclamou.

Originadas na Reforma Protestante a partir das 95 teses de Martinho Lutero em 1517, batistas, presbiterianos, metodistas, anglicanos e luteranos somam hoje 34.788 templos de Norte a Sul — atrás apenas da Assembleia de Deus e seus 43.578 CNPJs ativos, segundo levantamento da plataforma Brasil.io compilado pelo GLOBO. Só as igrejas batistas correspondem a 61% (21.392) do total das históricas.

Apesar de ter duas grandes associações representativas, cada igreja tem autonomia para decidir a sua linha teológica e política. Há, sob o mesmo guarda-chuva, vertentes mais alinhadas à direita, como a Batista Atitude, no Rio, comandada pelo pastor Josué Valandro Júnior e frequentada pela primeira-dama Michelle Bolsonaro; e linhas menos tradicionais, como a Batista do Pinheiro, de Maceió, cuja pastora Odja Barros é conhecida por celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, e a Batista do Caminho, no Rio, que tem à frente o pastor Henrique Vieira, um dos expoentes da ala mais à esquerda da denominação.

Doutor em sociologia pela USP e pastor presbiteriano, Valdinei Ferreira afirma que a aproximação das igrejas tradicionais com a política se intensificou nos últimos anos, período que compreende o governo Bolsonaro e em que também cresceu a difusão da ideia, especialmente por teólogos e lideranças da direita nos Estados Unidos, de que os cristãos precisam influenciar a visão de mundo:

— A ideia deles é a seguinte: perdemos o terreno para o secularismo e precisamos retomar a influência na sociedade, na política e no direito.

Foi justamente este entendimento que levou Bolsonaro a fazer o maior gesto de um ocupante do Planalto para os evangélicos. No ano passado, o governo indicou o ex-ministro da Justiça e presbiteriano André Mendonça para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), por onde tramitam pautas relevantes para a agenda cristã, como a descriminalização do aborto e do porte de drogas. A Corte, até então, era composta por sete católicos, dois judeus e outros dois ministros que preferem não revelar a sua religião. Segundo Uziel Santana, presidente da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), que apoiou a indicação de Mendonça, havia necessidade de “representar a identidade evangélica, como ocorre com outros grupos da sociedade”.

— Houve por parte do segmento evangélico, muito ativo nas últimas décadas, preocupação com decisões do Judiciário que entraram em questões que cabem ao Legislativo. Mas nunca entramos em movimentos como os que pedem para fechar o STF — pontua Santana.

Desde 2020, a igreja Presbiteriana, de André Mendonça, já dava sinais de que havia politizado o seu ambiente. Em Londrina (PR), o pastor Emerson Patriota, titular da Igreja Presbiteriana, chegou a ser flagrado em vídeo se empenhando no púlpito para buscar assinaturas para a criação do Aliança pelo Brasil — o projeto de partido de Bolsonaro que acabou não saindo do papel.

Há dois meses, mais evidências da politização. Na convenção do Supremo Concílio da denominação, os presbíteros discutiram uma proposta para criar uma comissão “antiesquerda”. A ideia foi rejeitada, mas um documento foi aprovado, frisando a “incompatibilidade entre o comunismo ateu e o materialista e a doutrina bíblica”.

No encontro, os fiéis reconduziram pela sexta vez ao cargo de presidente da instituição o reverendo Roberto Brasileiro. Oficialmente, ele costuma dizer que a igreja não se posiciona sobre candidatos específicos e que garante a liberdade de expressão aos pastores e demais membros. Não é, no entanto, o que aconteceu com o presbítero Flávio Macedo Pinheiro, que esteve, por 19 anos, em um templo da denominação na Cidade Dutra, em São Paulo, e foi denunciado internamente por ser adepto de ideias “marxistas e esquerdistas”. Pinheiro chegou a ser afastado do cargo de presbítero em fevereiro do ano passado, mas retomou o posto após uma decisão da instância superior da instituição.

Até 1º de abril, o filho do reverendo-mor da Presbiteriana, Gustavo Brasileiro, ocupava um cargo de confiança no Ministério da Educação, do qual foi exonerado logo após a demissão de Milton Ribeiro, também membro da denominação. Atualmente, Gustavo disputa uma vaga de deputado estadual de Minas Gerais pelo partido Novo, declarando-se apoiador do governador Romeu Zema (Novo), que tenta a reeleição, e de Bolsonaro.

A presença de batistas e presbiterianos no Brasil remonta à vinda de missionários dos Estados Unidos no fim do século XIX, momento em que se desenhava maior abertura religiosa e permissão para templos não católicos. Outros ramos protestantes, como os anglicanos e luteranos, chegaram a reboque das colônias inglesa e alemã formadas nos tempos do Império.

Ao longo dos anos, as novas formas de abordar os fiéis da Assembleia de Deus e Universal influenciaram quem começou a trajetória nas denominações históricas. O bispo e ex-deputado federal Robson Rodovalho deixou a igreja presbiteriana e fundou, em 1992, a Sara Nossa Terra, uma típica organização neopentecostal agressiva na coleta de ofertas e na compra de horários de TV.

Desde o início do governo Bolsonaro, a igreja Batista da Lagoinha, fundada nos anos 1960, viu explodir a sua relevância. Liderada pelo pastor Márcio Valadão, construiu 190 dos seus 271 templos nos últimos três anos e meio. O sucesso está ligado a um discurso de “renovação espiritual” que incluía curas divinas e exorcismos, e apelos a programas de rádio e à música gospel. A igreja é frequentada pela ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves.

— As igrejas neopentecostais surgem com tanta força que as protestantes históricas se veem quase forçadas a incorporar seus elementos, como a teologia da prosperidade — afirma o cientista político Vinicius Valle, estudioso do movimento evangélico.

O Globo